Doze

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Contra absolutamente todos os meus instintos, contra tudo o que eu acreditava, lá estava eu, de roupão apenas descalça na grama na frente do príncipe negro. Eu não fazia ideia do que tinha me levado até aquele momento, do que me impulsionou a vestir a primeira coisa que vi na frente antes de correr na direção do homem que eu queria distância. Passou-se tão pouco tempo e havíamos nos visto tanto... eu sentia como se já tivesse abaixado uma das muitas barreiras que construí contra ele. E de pé ali observando seus olhos, me questionei do porque de ter erguido essas barreiras.

— Não estou em minha melhor forma Kali, é melhor não se incomodar.

Lúcios voltou a olhar para o chão, brincando com as pedras brancas que contornavam a trilha do jardim. Flexionei os dedos do pé buscando o que dizer. Por que eu fui tão idiota insistindo em descer ali? Nem sequer sabia como ajudar! Ele deveria estar se sentindo tão exposto... pisei delicadamente nas pedras, os braços cruzados na frente do corpo por causa da corrente de ar frio que me era lançada. Então me sentei ao seu lado.

— Sabe, eu sou boa em resolver os problemas dos meus irmãos, talvez possa te ajudar.

O minuto de silêncio que Lúcios fez foi quase torturador. Me puni mentalmente por ter dito aquilo, como eu poderia ajudar um homem que não conheço? E se os problemas dele fossem ruins ao ponto de... do nível de Jasper e Edwin? Como EU poderia ajudar?

— Eu tenho uma história complicada de amor . Quer ouvir princesa?

Me ajeitei no banco largo em que havíamos sentado, subitamente me dando conta de que eu estava quase nua em uma noite de ventania. Então ainda sem refletir bem sobre meus atos o convidei:

— Se a história é longa o quanto imagino, talvez devêssemos entrar.

Finalmente percebendo minha situação atual, Lúcios se levanta do banco me oferecendo o braço, e eu o aceito. De repente não somos mais dois teimosos brigando por atenção, não somos nada além de dois adolescentes de braços dados a caminho de uma porta rosa. A rainha mandou pintá-la para mim assim que contei a ela todo o significado que a cor tinha pra mim. Bom... o objetivo era que ela me contasse o significado antes de morrer mas...

— Por que rosa? — Lúcios passa seus dedos pela madeira fria recém-tingida — Você usa algo rosa sempre, não importa o que vista. Sapatos, brincos ou vestidos... sempre algum detalhe rosa. Por que?

Esfreguei os pés no tapete evitando que o quarto ficasse sujo demais com a terra do jardim, e Lúcios retirou seus sapatos. Ele havia notado. Havia notado que rosa era minha cor, quando qualquer outra pessoa pensaria que isso não passa de um detalhe fútil.

— Minha mãe separou cores para cada um dos filhos. Essas cores nos definem. A minha era rosa mas... ela morreu antes de dizer o que significava.

Me sentei na cama esperando que ele se jogasse no sofá ou me seguisse, mas ele parou no meio de quarto e começou a observar. Cada peça de decoração, cada cor... cada detalhe. Quando eu pensei que ele desistiria de me contar sua triste história, ele começou:

— Era uma vez um garoto solitário. Ele teve três grandes amores, não todos românticos... um deles foi fraternal. O garoto tinha três irmãos mas era incapaz de sentir amor por eles antes de... ela chegar. O pai do garoto, cientista nos tempos vagos, criou uma magia que não podia entender. E por ser o filho mais velho, esse garoto também foi o primeiro cobaia. O experimento o tornou incapaz de amar. Como eu disse, até ela chegar. Seu nome era Cora, e ela não passava de uma migalha de gente que berrava e tinha seus pedidos atendidos na hora. Aquilo intrigou o garoto, e ele mal percebeu quando já a amava. Amor fraternal.

Finalmente depois de muito tempo rodeando o próprio espaço, Lúcios se sentou no sofá e cruzou um tornozelo sobre o outro, continuando:

— Já mais velho, o garoto conheceu uma bela jovem nos tempos em que seu irmão era fugitivo e ele não podia fazer nada além de desviar a atenção dos guardas para lados opostos. Uma jovem de vila, não muito rica nem nada mas... incrivelmente bela. O garoto e a jovem chamada Mayra, passaram a se divertir dia após dia juntos, conforme o coração do rapaz se amolecia aos poucos. Com o tempo e a presença inevitável da garota em sua vida, o garoto acabou se apaixonando. O garoto incapaz de amar amou a segunda vez, amor apaixonante.

Me levantei da cama me aproximando devagar do lugar onde Lúcios havia se sentado, dizendo a mim mesma que o motivo eram os olhos marejados de Lúcios, sua voz embargada, e não a necessidade de aproximação que eu sentia latejar no fundo de mim. Me sentei ao seu lado e deixei que ele continuasse depois de longos segundos...

— Alguns tempos depois, o garoto conheceu a terceira garota da sua vida, Jeanna. Como uma Orniana, ela e o garoto não se viam muitas vezes, mas todas as vezes lhes arrancavam risadas e muita felicidade. Para o garoto era um alívio escapar das experiências do pai e as expectativas da mãe. Fugir da coroa para encontrar com a amiga, aquela que o entendia.

Seu peito subia e descia com a respiração acelerada, as batidas de seu coração quase audíveis para meus ouvidos.

— Essas histórias Kali, todas elas... são histórias de como perdi as pessoas mais importantes pra mim. De como meu irmão as tirou de mim.

O tempo pareceu congelar enquanto eu juntava as peças. Edwin em um acidente matou a própria irmã, depois matou uma aldeia inteira, onde vivia Mayra. Mas Jeanna... de que forma ele teria tirado a vida de uma orniana? Lúcios usava aquela máscara de garoto mau porque tinha medo que vissem sua casca aberta. O quanto estava ferido por dentro. Quando eu pensei que a noite não podia ficar mais surpreendente, sem avisos Lúcios arrancou a camisa que vestia... e eu congelei.

As marcas, provavelmente marcas que ele nunca havia mostrado a ninguém... de costas para mim, eu podia ver toda a longa extensão de suas costas, as cicatrizes negras de uma ponta das costas até cobrir todo o ombro esquerdo até a metade do braço. Em formas de espirais, podia se assemelhar com tinta, tatuagens se fossem vistas de longe. Mas aquela textura... toquei a pele quente com meus dedos trêmulos e gelados, mas ele permitiu. Deslizei pelas cicatrizes e amaldiçoei o pai deles por tudo o que fizera com Edwin e Lúcios, pelo que poderia ter feito com os outros dois. A história de Jeanna ainda não havia acabado, mas isso, eu só ia descobrir na próxima semana.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora