Deixei que os dedos frios dele acariciassem meus ombros nus graças a camisola larga que eu vestia. Não precisei abrir os olhos para saber que os dele estavam voltados para mim. Um calafrio percorreu meu corpo quando batidas firmes ecoaram pela porta, fazendo-me esquecer em que quarto estava. Por um momento pensei em me esconder, mas a razão voltou a minha mente quando abri os olhos para o quarto rosa que a rainha havia montado por mim.
— Pois não?
Linhas quase imperceptíveis delineavam um círculo mal feito no teto, no lugar onde os invasores haviam derrubado para me atingir meses antes. Lúcios se arrastou graciosamente para trás do biombo enquanto eu enrolava para esconder os vestígios de que havia um homem em meu quarto.
— Precisamos conversar.
Minha mão congela a centímetros da maçaneta quando escuto a voz rouca de Jasper do outro lado da porta. Engulo em seco algumas vezes para tomar coragem antes de finalmente abrir a porta e encarar aqueles olhos turquesa quase transparentes.
— Ahn... poderia ser mais tarde?
Abro a porta apenas o suficiente para que ele veja meu rosto, uma fresta fina para que ele não insista em entrar. Evitando que ele encontre a camisa de Lúcios jogada em um canto ou os sapatos do mesmo. Ou até a mínima quantidade de roupa que o príncipe havia deixado ali para o caso de precisar, segundo ele.
— Eu realmente vou perder a coragem se esperar mais.
Dou uma rápida olhada para trás, onde Lúcios parece indiferente com a situação, silencioso enquanto remexe minhas saias extremamente bufantes.
— Certo. Me de cinco minutos, te encontro nos jardins.
Antes que ele possa protestar, fecho a porta e começo a me dirigir a Lúcios, que debocha dos frufrus que sou obrigada a vestir. Ele amarra um dos saiotes ao redor da própria cintura e desfila pelo quarto, tentando imitar meu modo de andar e de cumprimentar os nobres ao meu redor. Não consigo conter a gargalhada quando ele escorrega nos tecidos que deixou ao chão e cai, reclamando com a voz esganiçada representando minha própria voz.
— Eu não falo assim!
Lúcios solta uma gargalhada e começa a recolher as próprias roupas afim de se vestir adequadamente enquanto eu faço o mesmo do outro lado do biombo. Enquanto me visto, tento não pensar sobre o que Jasper quer falar mas é quase inevitável. Sei que o que tínhamos se quebrou, mas talvez a ideia de recuperar permaneça no coração do príncipe. Uma ideia útil apenas se Jasper conseguisse ultrapassar Finn e Lúcios em duas provas .
Caminho pelo corredor amaldiçoado meus sapatos sufocantes a cada passo que ecoa como um estalido de metal. Porque as solas são feitas de metal. O objetivo? Torturar jovens princesas é claro. O vestido verde claro bate da altura de minhas coxas, o que seria uma péssima escolha para um encontro com Lúcios já que ele seria capaz de manipular os ventos para que meu vestido subisse. Tento conter o sorriso ao imaginar a perversão divertida do príncipe, quase me deixando levar pela imaginação divertida. Jasper me espera com os braços cruzados atrás do corpo, a linha espada repousa na lateral do corpo, embainhada conforme ele passou a usar algumas semanas atrás. Me aproximo pela grama de olho no banco em que ele está sentado, mas ele rapidamente se levanta e nos conduz até um pergolado um pouco mais afastado.
— Linda tarde não?
— Ainda é manhã Jasper, e por favor... vá direto ao ponto.
Jasper solta os braços ao redor do corpo e encara a melodia quase física ecoada pelos pássaros que rodeiam o pergolado em específico. Uma magia especial parecia envolvê-lo, como se contesse os segredos mais bem guardados. Minha mente voltou-se para a pequena chave que encontrei enfiada na grama alguns dias atrás, uma que eu não pude investigar. Dúvida e ansiedade me corroeram aos poucos conforme o príncipe mascarado pensava e repensava o que falar.
— Eu sei que... nos afastamos. Mas... eu queria te dar um aviso.
Os olhos de Jasper tremeluziram e se encheram de água. Meu peito se apertou em pena, mas também se balançou em frustração.
— Tem algo... eu não posso....
Jasper grunhe e segura o peito com força, como se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração. A máscara não consegue mais esconder a expressão dura de seu rosto, e estou prestes a correr atrás de um curandeiro quando ele solta:
— Finn, confie no que Finn te disse!
Então o príncipe cai no chão de joelhos, suor escorre pelo seu rosto e sua respiração fica cada vez mais agonizante. É quando percebo que Jasper está sob um pacto de alma Rithanico, e ao tentar me avisar de algo sua vida também correu perigo. Puxo seu corpo contra o meu, mas sei que qualquer movimento é inútil. Nem o melhor curandeiro de todo o mundo poderia reverter os danos causados por um juramento de alma e poder. Eu só podia esperar que ele fosse esperto o bastante para desviar das palavras certas. Que ele não tivesse realmente quebrado o juramento. Enquanto esperava pacientemente pela melhora de Jasper, sentada naquele pergolado com sua cabeça apoiada em meu colo, minha mente vagou até Finn. Buscando no fundo de minha consciência algo de importante, algo que deixei passar.... e então paro. Como uma peça que se encaixa, como uma criança que finalmente acha seu brinquedo no fim do baú, minha memória me lembra da manhã em que eu e Finn tomamos chá após sua ótima performance na primeira prova, me lembro até do azul de seus olhos naquela manhã calorosa. E de sua frase sussurrada antes de sermos interrompidos por Lúcios :
"Kalishta, tem algo muito errado aqui. Preciso que me prometa que vai tomar cuidado com todos, tudo bem? Todos! Você é a peça mais importante do tabuleiro!"
Aliviada por descobrir o a charada que poderia ter custado a vida de Jasper mas ainda mais assustada por saber do que se trata, finco as unhas nas minhas mãos em busca de algum controle. Porque minha mente fervilha, e o que menos preciso é que a floresta fervilhe comigo. Emory, ela era a pessoa que me ajudaria a achar as respostas para aquela chave, nela eu podia confiar. Ou pelo menos tentar. Depois de tudo, ali naquele jardim quilométrico, percebi que mentiras haviam sido tecidas cedo demais, e vistas muito tarde. Ali naquela manhã, fiz da minha paixão meu principal suspeito.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O herdeiro negro
Short StoryDepois de juntar todos os herdeiros do país dourado, os cinco amigos e mais alguns agregados entram em uma missão para fortalecer a si mesmos e retomar o controle das mãos do herdeiro negro. Mas intrigas e confusões esperam pelos príncipes e princes...