Dois

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Meus músculos da coxa ardem. Sustento a respiração ofegante que fere meus pulmões, o ar penetrando afiado como faças. Meu corpo inteiro queima de dentro para fora, liberando chamas que não consigo conter. Sinto o cheiro de queimado mas já é tarde para controlar, minha roupa é consumida em chamas em sua maioria, retornando em trapos quando consigo apagar o fogo.

— Está melhorando, mas ainda não é o suficiente.

Zander assumiu o lugar de Arlo em me treinar, então sempre que podemos escapamos para o campo aberto ao leste do castelo de Elliwe, e ele me ajuda a conter o fogo e controlá-lo melhor. A fama de brutal controlador do fogo que Arlo construiu, não foi pelo tamanho de suas chamas, ou pelo calor das mesmas. Foi pelo domínio, controle. Arlo era capaz de direcionar uma linha fina com a mente de fogo até o corpo da vítima, causar mortes específicas sem muito estrago envolta. E pelo acidente de alguns meses atrás, meus irmãos perceberam que isso não é exatamente meu forte... O treino de Zander consistia em me colocar para correr enquanto mantinha chamas acesas por todos os meus poros, sem deixar que se dissipassem e sem permitir que cresçam demais. O segredo do controle está na concentração, e ela se põe em falta quando nem a respiração eu posso controlar.

— Temos mais um jantar hoje com os herdeiros, parece que a expedição até Kibtaysh nos trouxe informações. Se arrume.

Caio na grama derrotada, desanimada e suada. Estamos em Elliwe a alguns dias apenas, um reino aliado que ofereceu seu lar para nós enquanto ainda era perigoso voltarmos a Kibtaysh. A princesa Emory se tornava cada vez mais suportável, e a rainha cada vez mais amável. Eu gostava daquele lugar, a magia verde que a família real possuía parecia se estender até as fronteiras daquele lugar. Abri os dedos dos pés descalços na grama acariciando-a como fazia em Kibtaysh , mas nenhuma torrente de energia passou por mim. Me senti bem sim, talvez pela proximidade que eu já havia adquirido com gramíneas, e mato em geral, mas não foi mágico como era em Kibtaysh. Um intenso vazio se formou em meu peito, me sufocando de saudade. Saudade das minhas terras, da natureza de lá. Em Elliwe o inverno nunca chegava, já que a magia dos reis aqui era a que controlava a natureza saudável. Mas eu sentia falta até da neve em meus pés. Rolo na grama até criar coragem para me levantar. Tronco os dentes para não soltar um gemido de dor enquanto me arrasto de volta ao castelo. Não é atoa que o corpo inteiro de Zander é torneado... sinto o meu próprio tomando uma forma mais acentuada após apenas alguns dias.

— A senhorita vai se atrasar!

Nani e Buni (que foram trazidas na segunda carruagem de Kibtaysh para cá), já me esperavam com a banheira cheia e escova nas mãos. Exausta, apenas me jogo nos braços das garotas e deixo que me arrastem até o recipiente molhado. Afundo meus ossos na água morna soltando um gemido ao relaxar. As gêmeas não me deixam ficar muito tempo, assim que estou limpa me arrastam pelo quarto me vestindo e maquiando, arrumando meu cabelo e meus traços me adornando de joias para o jantar. Certamente aquela noite seria mais importante do que Zander havia demonstrado mais cedo, notei pelos brincos pesados em minhas orelhas e a pequena coroa de rubis em minha cabeça.

Finalmente pronta, dei com Vlad no corredor a minha espera, alegando que se não me arrastasse eu chegaria atrasada como sempre. Com um braço entrelaçado no de Vladmir, segui pelo corredor de mármore azul-claro, meus saltos de vidro ecoando pelo piso liso e escorregadio. Juntei todas as minhas forças restantes para o equilíbrio que precisei exercer tentando não me espatifar no chão gelado, meus músculos exaustos quase desistindo da tarefa. O vestido grande demais precisava ser levantado, a coroa pulava em minha cabeça, mas quando paramos em frente a porta branca da entrada do salão, eu estava intacta. Acalmei a respiração e lancei o corpo para dentro assim que meu irmão abriu as duas portas. Todos nos esperavam já sentados em seus lugares, a comida no prato intocada. Dois lugares estavam vazios, um entre Kai e Owen, e outro entre Edwin e Lúcios. Antes que eu pudesse fazer qualquer objeção, Vladmir tomou o primeiro assento, deixando o assento entre os irmãos Rithan vazio. Contraio as mãos atrás das costas caminhando o mais rápido que posso na direção do assento, tentando não pensar no fato de que me sentaria do lado de Lúcios. Mas meus saltos malditos não me ajudaram a manter a postura. Faltando apenas alguns centímetros para me sentar e o jantar ter seu início, um de meus saltos escorregou no piso liso e fez meu corpo pender para frente. Vi tudo em câmera lenta, meu corpo pendendo, o desequilíbrio tomando forma, e a forma com o peru assado cada vez mais próximo do meu rosto. Mas ele nunca o atingiu, porque fui segurada. Lúcios havia se levantado em uma fração de segundo, e estava agora segurando o corpete do meu vestido quase arruinado, enquanto evitava os olhares curiosos de Jasper. Fui erguida para trás e me deixei desabar na poltrona, ansiosa como nunca para que começassem a falar.

— Certo, vamos às informações. — Emory começa estendendo a mão para Asher, um dos homens que foram designados para explorar Kibtaysh. — Estamos ouvindo soldado.

— Certo, primeiro as informações gerais... Kibtaysh tem se mantido firme no que diz respeito a natureza, aparentemente o sangue de Kai funcionou. — ou o meu.... — Os invasores permanecem na capital, mas a cidade não foi atingida. O objetivo deles ainda é incerto, mas parecem fortalecidos, quem quer que esteja no comando... tem aliados. Um exército está instalado no castelo.

Asher fez uma reverência e voltou a se misturar com os outros guardas no fundo do salão. Suspirando, Kai coloca a cabeça entre as mãos tentando abafar o grunhido de raiva que solta logo depois. Até Emory, que não tem muito a perder com a confusão em nosso reino parece preocupada. Genuinamente. Edwin aperta minha mão por baixo da mesa em sinal de apoio: meu amigo está do meu lado. E apesar de suas convicções, eu sei que ele se casaria comigo pelo meu reino.

— Como eu disse da última vez — Vlad pigarreia retirando uma poeira invisível do próprio paletó.— a forma mais fácil de retomar nosso reino sem muito sangue é casando Kali e Emory. Se quiserem, claro.

Zander murmurou um "eu gosto de sangue", mas Vlad continuou:

— Para mais opções, eu proponho uma competição entre todos nós rapazes, para definir quem são os mais fortes para o cargo. Mas é claro que eu e meus irmãos competiremos contra a mão de Emory, e os outros príncipes pela mão de Kalishta. Se concordarem, claro.

Me lembrei da vez em que a rainha de Elliwe me arrastou para um chá da tarde, e me contou como Emory não se dava bem com... garotos. Se entregar para um homem que não ama para ajudar um reino que nem é seu... não posso imaginar o quanto a decisão é difícil para ela. Mas ela concorda, surpreendendo a todos, mas principalmente Edwin, que deve conhecer o segredo da amiga. Então todos esperam minha resposta. Mas eu já andei na carruagem sem saber, e agora apesar de saber ela não mudou. Vou me casar com Edwin, já conheço seu poder e sei o quanto é forte. Ele ganhará a competição e seremos um casal feliz porque somos amigos. Então salvarei meu reino e minha família. Meu povo.

— Não vejo problema Vlad.

— Certo, prossigamos com os planos então .

Me concentrei no aperto da mão de Edwin contra minha, ignorando o olhar de indignação de Jasper em minha direção. Ignorando o sorriso sarcástico que Lúcios me lançava. Depois do jantar teríamos uma conversinha sobre a provocação na floresta.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora