Oito

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Pela visão de Edwin:

Eu tinha cinco anos. As pessoas me dizem que ainda não tinha idade o suficiente para diferenciar imaginação da realidade, mas a dor que sentia naquela sala roxa era bem real. Controle, essa era a desculpa do meu pai para acorrentar os próprios filhos em macas e abri-los até que fossem capazes de manter uma mesa no ar mesmo com dor. Os testes começavam cedo, não muitos anos depois que aprendêssemos a falar. Segundo meu pai, dor era disciplina. Naquela manhã  o sol se escondia atrás das nuvens, como se até ele soubesse o quão irritado meu pai chegaria com os peregrinos. Austin me ensinava a amolar minha adaga em uma pedra lisa que encontrara no jardim, seus cachos negros caindo nos olhos cinza concentrados conforme explicava. Algumas pessoas diriam que eu era novo demais para aprender esse tipo de ofício, outras que a rainha era louca de deixar  um filho de sete anos com um de cinco é uma faca sozinhos. Mas minha mãe estava fraca demais para negar qualquer ação que meu pai aprovava, sua palidez e bochechas murchas disfarçadas debaixo de quilos de maquiagem.

— Entendeu Ed? Tem que ser suave, mas firme. Como mamãe diz sobre nossos corações.

Observei uma borboleta que ousava não ponta da adaga que meu irmão segurava. Suas asas se abrindo e fechando lentamente, como se desafiasse qualquer um de nós a espanta-la. Estendi meus dedos até ela, mas antes que eu pudesse alcançar, ela ficou dura e caiu no chão. Morreu sufocada... eu conhecia bem aquele truque.

— Lúcios! — Austin bufou — Você é tão desagradável... precisava mesmo matar a pobre criatura?

Lúcios sorria de lado deixando apenas um dos caninos que já cresciam à mostra. Damian e Cora o seguiam curiosos, mas assim que minha irmã me viu, correu para os meus braços. Apertei seu pequeno corpo contra o meu.

— Você é tão sentimental. Espere para ver a reação de papai quando descobrir que tentou defender uma borboleta de mim!

— Mas eu não...

A frase de Austin foi cortada quando Lúcios começou a arrancar o ar de seus pulmões, sufocando-o vivo. Damian, que em geral seguia e concordava com as loucuras de Lúcios parecia sinceramente preocupado. Mas não ousou parar. Entrei na frente dos dois com a adaga que meu irmão derrubará no chão, e gritando corri em direção a meu irmão mais velho. Damian não me impediu, muito menos precisou, pois eu não acertei Lúcios.

— Verme fraco, depois que eu acabar com você vai se arrepender de tentar me atacar!

Lúcios esqueceu de Austin e concentrou-se em me sufocar. Caí no chão incapaz de mover meus próprios dedos conforme meus membros perdiam oxigênio. Fiquei tonto, a pressão contra meu cérebro fazendo minha mente girar. Senti que ia morrer, naquele momento pensei que meu irmão me mataria. Mas o sufoco passou, e quando consegui levantar um pouco a cabeça, percebi o porquê. Cora estava entre nós, os braços cruzados em uma posição de autoridade. Mesmo com apenas quatro anos, ela já o assustava. Não medo real, que fazia suas entranhas se revirarem, assustava porque ela era a única coisa que Lúcios amava. Não amava nossa mãe nem nosso pai, muito menos cada um de seus irmãos. Lúcios só amava Cora, porque ela o entendia e o via, o amava através do véu de maldade que ele havia tecido para si.

O tempo fechou, as nuvens se condensando preparadas para encharcar qualquer um que estivesse desprotegido, por isso adentramos o palácio mesmo que nosso pai já estivesse lá. Eu batia os dentes de medo, a ansiedade quase me corroendo conforme eu seguia meus irmãos para a sala roxa depois de ter deixado Cora em seus aposentos. Era meu primeiro dia de treino, então eu não fazia ideia do que esperar. Lúcios foi quem abriu a porta, todos nós o segundo como pontinhos seguem sua mãe galinha. Mas Lúcios não dava a mínima pra nenhum de nós, tinha a própria tortura para se preocupar.

— Certo

O rei se levantou da pilha de papelada que se estendia por sua mesa de pesquisa, que ficava quase no centro da grande sala ocupada por macas e bandejas de utensílios pontiagudos. Seus cabelos negros como os dos meus irmãos brilhavam com o suor da viagem de dois dias, os olhos cinzentos cheios de irritação por nosso atraso.

— Primeiro prendam Edwin na maca um, o primeiro dia é o dia de testar resistência a dor.

Segui obediente Austin até uma das macas que estava marcada com o número um na frente, então escalei com a ajuda de uma pequena escada para conseguir me deitar. Grilhões pesados repousavam perto da maca, dois de cada lado, tão grandes que eu podia escorregar minha mão para fora se quisesse, percebi depois que Damian e Lúcios os prenderam em mim. Os dois mantinham os olhos tristes conforme seguiam as orientações do meu pai para abrir minha camiseta, enrolar um pano ao redor de minha boca e preparar unguento. Mas eu ainda não estava apavorado. Não estava apavorado porque tinha apenas cinco anos, e nunca imaginaria que meu próprio pai pudesse me machucar tanto. Naquela manhã, enquanto raios brilhavam apressados antecedendo os trovões raivosos que abafavam o som de meus gritos como o pano enfiado em minha boca, eu aprendi que meu pai podia sim me machucar muito.

Levou uma semana para que as cicatrizes em minha barriga já não me impedissem de andar encurvado. Isso claro, não impediu meu pai de usar minhas costas. "É para o nosso bem" dizia Austin. "Não podemos fazer nada a respeito" afirmava Damian. "Pare de chorar como uma mulherzinha" debochava Lúcios. Cada um já tinha aceitado de alguma forma. Cada um de meus irmãos, já conformados com tudo o que nosso pai fazia conosco. Mas eu não, eu nunca esqueci e nunca perdoei. E mesmo assim, quando quase o matei, fui eu quem recebeu  a maldição. Maldita maldição de seu poder dentro de mim, que apagava qualquer traço de humanidade quando usado.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora