A segunda prova começou com minhas mãos suando debaixo das luvas rosa-claro de renda que eu vestia naquela manhã. O teste de proteção começara, mas o desafio ainda era uma surpresa. Todos aguardavam ansiosos, todos menos Lúcios que exibia aquela expressão calma de conquistador que ele possuía. Quando a rainha adentrou o salão abobadado com um vestido deslumbrante que deixava qualquer jovem para trás, todos pareciam segurar a respiração. E ela parecia gostar. Emanando autoridade, a maravilhosa rainha se coloca a frente de todos e começa a falar:
— Hoje a prova não será totalmente simultânea. É verdade que os pretendentes de Emory e os de Kalishta realizarão ao mesmo tempo, mas como as princesas serão necessárias, não será possível que cada participante faça ao mesmo tempo que outro concorrente da mesma princesa.
Eu e Emory trocamos um olhar preocupado. Seríamos usadas na prova de proteção, o quão ruim aquilo deveria soar? Esfreguei uma mão na outra tentando conter o nervosismo diante das milhares de teorias que já se formavam em minha mente em relação a prova.
— Dessa vez a prova será na floresta, Emory e os príncipes ruivos vão para a Leste e a outra parte para o outro lado.
Como se fosse um comando, os guardas começaram a me conduzir para a saída do salão, aos príncipes logo atrás. A rainha me acompanhou como na prova anterior, deixando que o rei seguisse a filha. Pensei em meu próprio pai em seu leito, envenenado pelo próprio filho. Mantive a expressão impassível, porque alemão era lugar e nem hora para amaldiçoar membros de minha família. Eu tinha que me concentrar em dar vantagem para Jasper já que participaria da prova.
— Muito bem.
A rainha começou quando todos já havíamos chegado ao começo do bosque, com cordas aos seus pés.
— Kalishta querida, me deixe amarrar você, sim?
Dei um passo instintivo para trás, e sem querer escorreguei na grama molhada e caí de costas contra o corpo de Lúcios, que por algum motivo permanecia atrás de mim. Ele me segurou pelos cotovelos enquanto eu retomava o equilíbrio murmurando um pedido de desculpas baixo.
— Ora, vamos não é nada demais. Se algo sério acontecer você pode romper as cordas ao queimá-las, certo?
A rainha olhava para mim esperançosa. No fundo eu sabia que uma tentativa de libertação poderia acabar em um incêndio, mas mesmo assim concordei. Estendi os pulsos e deixei que a rainha os amarrasse não frente do meu corpo, apertado o suficiente para que eu não me movesse muito mas sem machucar. Finn se adiantou para o meu lado e retirou minhas luvas, tentando fazer daquilo menos desagradável. Sorri com o gesto mesmo que quase inútil.
— Certo príncipes, assim será a prova: a princesa entrará na floresta sob os cuidados de um de vocês por vez, lá dentro haverão soldados escondidos prontos com flechas e espadas inofensivas, mas que vão marcá-la com tinta. O objetivo é correr até o lago no centro da floresta e me trazer uma taça cheia de água de lá. O príncipe que trouxer Kalishta mais limpa obtém a maior pontuação, e a tinta não sai caso pensem em trapacear. Ah, e quanto mais tinta mais grave é a ferida, pontos letais serão contados, e se acertarem a princesa no coração, pescoço ou cabeça, a partida acaba.
Minhas esperanças quase foram pelos ares quando as regras terminaram de sair pela boca da rainha. Trapacear era minha chance de empurrar Jasper para o topo, mas... tínhamos algo que ninguém mais tinha. Nos comunicávamos muito bem, e eu facilitaria muito pra ele. Claro que com Lúcios seria ao contrário. Me encostei contra o tronco de uma árvore e esperei que Finn se colocasse ao meu lado com uma taça prateada nas mãos . E então a rainha deu o sinal. Atrapalhada sem poder usar os braços para auxiliar no equilíbrio, aceitei que Finn me carregasse em um ombro por mais da metade do trajeto, até que as vozes da rainha e dos guardas sumissem junto com o borrão de seus corpos. Então Finn me colocou no chão, fazendo sinal para que eu ficasse em silêncio.
— Pise onde eu pisar.
O príncipe sussurrou, tão perto de meu ouvido que me causou cócegas é um arrepio. Finn seguiu à minha frente, se esgueirando por entre as árvores longe da trilha, os passos leves como o de uma pluma. O segui tomando todo o cuidado possível para evitar atrapalhar demais, mas sem facilitar muito andando rápido. Chegamos ao lago sem interrupções, ele encheu a taça e daí veio o problema:
— Vamos correr.
— O que?
— Já chegamos aqui, só precisamos voltar, posso congelar a água para não cair do cálice, ela não disse que devia ser líquida.
Esperto. Garoto esperto. Assim que concordei, Finn com um pensamento fez a água do cálice virar gelo, e agarrou meu braço me mandando segurar a taça com as duas mãos atadas juntas. Em um movimento tão rápido que eu mal percebi, ele me colocou em um dos ombros e correu, incansavelmente de volta ao palácio. Mas fizemos barulho demais, atraindo a atenção de caçadores que notaram nossa presença e começaram a atirar bolinhas de tinta com seus estilingues sem piedade. Mas Finn era rápido, inacreditavelmente rápido mesmo comigo nas costas. Algumas bolinhas me acertaram mas seriam ferimentos leves já que estavam nas pernas ou nos braços.
Quando finalmente ele parou de correr e me colocou no chão, meu estômago se revirou. Mantive a cabeça baixa para o caso de algum imprevisto, me apoiando com uma mão contra a árvore. A rainha pegou a faca nas mãos e não conteve o sorriso de surpresa.
— Muito bem Finn. Asher anotara seus pontos.
O soldado que permanecia alheio à todos anotou algo em um conjunto de papéis que trazia consigo, e então Lúcios anunciou:
— Eu gostaria de ir por último se meu irmão e Jasper não se importarem.
O herdeiro negro negando a chance de passar na frente em disparada? Algo estava errado. Mas pra mim, quanto mais demorava a me enfiar naquele mato com nada mais que Lúcios ao lado, e ainda por cima amarrada, melhor. Então quando Edwin concordou seguido de Jasper, tudo o que fiz foi observá-lo pegar uma taça vazia e enganchar seu braço no meu enquanto adentrávamos pela floresta. A presença do príncipe-cenoura era calma e bem vinda. Eu me sentia tão em casa com ele quanto me sentia com qualquer outro de meus irmãos. Apertei meu corpo contra seu braço deixando aquela presença confiável me guiar por entre as árvores irregulares. Me perguntando como dois irmãos podiam ser tão absolutamente diferentes em tudo, menos nos olhos cor de granito.
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O herdeiro negro
Short StoryDepois de juntar todos os herdeiros do país dourado, os cinco amigos e mais alguns agregados entram em uma missão para fortalecer a si mesmos e retomar o controle das mãos do herdeiro negro. Mas intrigas e confusões esperam pelos príncipes e princes...