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Olho para o relógio e quase engasgo com o café quando vejo o horário. Não posso acreditar que já são três horas e eu não fiz nada ainda. Bom, fiz muitas coisas, mas nada que tinha planejado. Mas sempre é assim nessa época do ano.

Eu deveria ter acordado e feito as sobremesas, almoçado e passado a tarde inteira ajudando na decoração da casa, para ter um bom tempo para me arrumar e maquiar pra ir na casa do Dudu e depois vir jantar aqui.

O que aconteceu foi que eu acordei cinco da manhã com meus primos chegando de São Paulo, ajudei eles a se arrumar, tive que fazer o café, cuidar das crianças enquanto os pais dormiam um pouco, fiz almoço para todos, lavei dois banheiros, almocei a comida que eu fiz fria (e tinha acabado a carne), comecei a fazer as sobremesas e tinham gastado a manteiga inteira, sai para comprar manteiga e voltei com uma compra de 378,59 reais, sentei para tomar café e... bem, estou aqui.

Estou animada com ter todos aqui em casa, faz exatamente onze meses desde que vejo meus primos e sempre é divertido quando todos estão aqui. Brincamos, jogamos cartas, vemos filmes e cozinhamos juntos. Minhas primas me contam todas as fofocas de suas vidas agitadas de cidade grande e eu desabafo sobre minha vida aqui. É bom ter pessoas novas para conversar.

Sem falar que eu simplesmente amo o Natal. Eu amo o Natal, sério. Sei que posso parecer uma criança falando isso, mas é verdade. Sempre fui fascinada com a data, sempre quis ajudar e cozinhar, mas nunca me deixavam por ser muito nova. É a primeira vez que confiam em mim para fazer alguma coisa que realmente importa. Antes eu só podia carregar cadeiras e cuidar das crianças, hoje eu vou poder fazer uma sobremesa e ajudar na janta.

Sei que parece estúpido, mas sonho com o dia de poder dar meu próprio jantar de Natal. Na minha casa, e não na da vó. Fazer todos os pratos e fazer todos se sentarem bonitinho pra comer junto. Como a mãe do Dudu faz todo ano, segundo ele. Minhas irmãs falam que eu sou idiota e que isso daria um trabalhão, mas elas sonhavam em ter aquelas festas de casamento enormes e eu não julguei, então...

Pode ser que eu tenha julgado um pouquinho.

Coloco a xícara na pia e a lavo rapidamente, começo a medir os ingredientes para a sobremesa. Meu plano é fazer duas tortas e um pudim. Uma torta de chocolate com morangos e outra de limão. Uma vou levar para a casa do Dudu e outra vou deixar aqui com o pudim.

Claro que não é suficiente, mas aqui é assim, cada um traz um prato. Minhas tias vão fazer sobremesa também, pavê, pudim, bolo de chocolate, e minhas adoradas rabanadas.

Rabanada é, para mim, a melhor parte do Natal. Eu comeria em todos os meses do ano se soubesse fazer, mas nunca fica boa. Ou doce demais, ou dura, ou gordurosa ou sem gosto, de um jeito ou de outro sempre dá errado. E minha tia me diz todos os anos que vai me ensinar a fazer, mas nunca ensina. Sempre fala que vai me chamar, mas não chama, e depois quando eu reclamo ela diz que fez em cima da hora. A-T-A, sei bem que ela não quer perder a fama.

Mas um dia eu pego essa receita, quer ela queira ou não!

Quando me viro para pegar a bendita manteiga na geladeira encontro a própria visão do inferno: meu irmão de cueca comendo os morangos que comprei para a torta.

— Jão, na boa, larga os morangos — ele ri para mim e come mais um, com a porta da geladeira aberta me desafiando. Tudo que eu precisava nesse dia fatídico — se não largar vou te dar um socão — a ameaça só faz ele rir mais, então avanço tentando tirar a caixa de plástico da mão dele.

— Ô mãe! A Julia tá me batendo aqui na cozinha — ele grita e eu dou um tapa no braço dele.

— Babaca, quantos anos você tem, 5?

— Deixa sua irmã cozinhar em paz João, você já não faz nada, vê se não atrapalha — a voz rouca do meu pai enche a cozinha e meu irmão larga minhas mãos no mesmo momento.

— Idiota.

— Otária.

E assim acabou a discussão. Minha mãe nem se deu o trabalho de levantar do sofá, até porque estava na hora do programa que ela gosta e nada poderia interromper aquele momento dela com ela mesma.

Pego os morangos que caíram no chão e coloco todos em um escorredor, os lavando com água corrente. Meu irmão começa a jogar vídeo game na TV no quarto dele com o volume no máximo e eu tento me distrair na cozinha para não enfiar a cabeça dele dentro da tela.

João é assim, não faz nada da vida. Se formou e nunca procurou um emprego, vive aqui em casa jogando videogame e pelada com os meninos da rua. Meu pai já tentou levar ele para trabalhar várias vezes, mas ele só quer saber de vida boa. De vez em quando manda o currículo mal feito para alguma empresa e usa como desculpa que foi rejeitado pra ficar no sofá por mais dois meses.

Enquanto isso eu e minhas irmãs trabalhamos dois turnos para ajudar a sustentar a casa. Enfim, o privilégio masculino. Sempre imagino o que vai acontecer quando ele arrumar uma namorada e quiser sair com ela, será que um homem de 21 anos não tem vergonha de pedir dinheiro para mãe pra ir tomar sorvete com a namoradinha?

Meu Deus, e quando ele tiver que sustentar uma casa... melhor fazer como meus pais e parar de pensar nisso.

Foco novamente em começar a fazer minhas tortas. Misturo a farinha com açúcar com a manteiga e duas colheres de água gelada e misturo com as mãos até parecer uma massa de torta. Agora isso tem que esfriar durante um tempo, vou fazer o creme de limão para a segunda torta.

O creme de limão é na sorte, as vezes dá certo e muitas vezes não. O segredo é misturar enquanto coloca os outros elementos, tudo isso no fogo baixo. O único problema é que ninguém nunca me ajuda nessa casa então eu acabo colocando tudo e depois misturando e isso faz o creme talhar e ficar com aparência de ovos mexidos mal cozidos com um toque de limão.

— Jão! Me ajuda aqui rapidinho.

— É tudo eu nessa casa! Não tenho um minuto de paz! — ele vem de seu quarto, ainda de cueca, sem ter tomado banho dia inteiro, com o canto da boca sujo de doce de leite e segurando a manete. Tento conter minha cara de nojo e sorrio para ele.

— Só espreme o limão aqui enquanto eu mexo, por favor?

— Tá — pega o limão e começa a espremer em cima da panela sem esperar um segundo.

— Pode, por favor, fazer isso em cima daquela peneirinha para não cair os...

— Eu sei o que estou fazendo, ok? Cozinho melhor que você.

— Você nunca cozinha Jão!

— Porque não quero, mas se quisesse, seria o melhor da casa.

— Claro, obrigada por sua humildade de deixar nós pequenos humanos cuidar da cozinha pra você.

Algo apita no quarto dele e ele joga o limão dentro da panela e sai correndo sem mais nenhuma explicação. O creme fervente pinga nas minhas mãos e braços e eu vou correndo colocar minhas mãos debaixo da água gelada.

O creme fica no fogo.

Quando volto, são ovos mexidos com um toque de limão. 

Então é NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora