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Parece que está se tornando algo normal eu pensar que vou ter um segundo de paz com meu namorado e alguém gritar de algum lugar e nós termos que sair correndo para socorrer. Sinceramente, eu pensei que o Natal seria agitado com tanta gente de fora vindo, e minha família que mora aqui no bairro já dá um trabalhão sozinha, mas também pensei que teria alguns minutinhos de paz. Só alguns.

Fico tonta por ter levantado rápido demais, mas Dudu me segura e vamos andando até o lado de fora da casa onde várias crianças estão correndo e uma das minhas priminhas está sentada no chão chorando, enquanto sua gêmea bate em outra criança com um... pinho?

— O que aconteceu aqui? — pergunto nervosa levantando o tom de minha voz e as crianças param de correr. O pinho que está nas mãos de Allanah é apenas um em um mar de pinhos no chão que provavelmente saíram das decorações do terraço. Respiro fundo e me preparo pra gritar novamente quando vejo Dudu sentado ao lado de Hannah abraçando a garotinha.

— O que aconteceu aqui, podem me falar, por favor? — eu pergunto com o tom de voz mais baixo e tentando sorrir, não quero parecer uma louca neurótica que grita com crianças na frente de Dudu. Pelo menos não agora.

— O Enzo jogou uma bola na cara da Hannah!

— Não joguei não!

— Jogou sim!

— Mas não era pra machucar, a gente tava brincando de guerra de bola de...

— PINHO? ISSO MACHUCA, É DURO, TEM PONTA! QUEM DEIXOU VOCÊS PEGAREM ISSO?

— Olha só, foi só um arranhão, você quer ir ali comer um doce? — ouço Dudu conversar com a criança em seu tom de voz normal, sorrindo, segurando a mão dela, mas não consigo controlar minha raiva, meu sangue já está fervendo.

— Sim — Dudu olha pra mim como se pedisse minha permissão e eu assinto enquanto ele sai com Hannah e Allanah vai atrás.

— Calma ai mocinha, você fica pra conversa.

— Mas... — ela começa a reclamar, olhando para a gêmea que está completamente entretida com os cachos de Eduardo.

— Nem mas, nem menos. Ouve aqui todo mundo esse tipo de brincadeira machuca os outros, e machucar os outros não é legal, vocês querem machucar seus primos?

— Nããão — todas as crianças respondem juntas, mas eu sei que elas não entenderam nada e que no segundo que eu me virar eles vão continuar fazendo a mesma coisa.

— Vocês gostam de ver a Hannah chorando? — continuo, tentando fazer com que eles realmente entendam que não pode bater nos seus primos com pinhos. Por mais que, por dentro, eu gostaria de ter tido essa ideia mais cedo.

— Não tia!

— Então vamos brincar de coisas menos perigosas, okay? Pique-pega, pique-esconde, elefantinho colorido, essas coisas, ou podemos todo mundo ver um filme... Sem violência tá.

— Tá tia — estou começando a ficar nervosa com a quantidade de vezes que eles me chamam de tia.

— Agora pode ir todo mundo brincar no terraço perto dos seus pais enquanto eu converso com a Allanah.

— Mas tia!

— Ja te disse...

— Nem mais nem menos — um dos meninos responde me imitando com a voz fina.

— Allanah, eu sei que você estava batendo nele porque ele machucou sua irmã, e quando machucam minhas irmãs eu também quero bater nas pessoas, mas eu não bato, sabe o motivo?

— Você é adulta?

— Não. Bater não é solução, só piora. Se a mãe dele chegasse aqui e visse isso você acha que ela brigaria com você ou com ele?

— Mas não é justo — ela tenta argumentar comigo, e vejo algumas crianças revirando o olho, já cansadas desse assunto e com vontade de ir fazer outra coisa.

— Não, a vida não é sempre justa mas sempre que tiver a opção de chamar um adulto é melhor do que bater nos seus primos, okay?

— E quando não tiver?

— Ai empurra ele e sai correndo pra onde tem um adulto — respondo, nervosa com as perguntas, e mordo minhas bochechas imediatamente. Esse é o tipo de coisa que eu não posso ensinar para crianças.

— Você é engraçada tia.

— Eu sou a tia legal né? A tia divertida.

— Mais ou menos... você sempre grita com a gente e fala que não pode brincar e pede pra gente cantar mais baixo... — interrompo ela, não estou gostando do lugar que esse assunto está indo.

— Entendi, eu sou a tia chata. Vou tentar melhorar, se você pararem de fazer coisa errada.

— Tá bom.

— Agora vai pra cozinha comer doce com a sua irmã.

Não precisei falar duas vezes, quando pisquei a garotinha já tinha ido embora correndo e tudo que restava era uma quantidade incrível de pinhos na garagem da minha casa.

Me levanto lentamente e sigo a menininha para a cozinha onde encontro um Dudu de cara feia.

— Que foi?

— Não pode tratar as crianças diferente, sabe? Brigar só com umas, dar doce pra outras... essa preferência aí...

— Quem não pode ter preferência é os pais, a tia pode sim.

— É mesmo? — ele levanta a sobrancelha, cético.

— Pode acreditar, tenho muita experiência sendo tia.

— Toda vez que olho para o lado tem alguém da sua família que eu nem sabia que existia.

— É, me sinto assim também.

Antes que eu consiga dar um mísero beijinho em meu namorado ouço o grito já conhecido de Hannah e meus olhos encontram a garota e sua irmã na porta da sala encarando meu tio dormindo. Meu tio vestido de Papai Noel com o saco de presentes das crianças intacto nas costas.

Nem consigo imaginar o quanto essa imagem pode traumatizar essas meninas. Respiro fundo e entro novamente no "modo solucionar problemas". Acho que quando esse dia acabar eu vou estar morta ou ter me transformado em um robô. 

Então é NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora