Fico alguns segundos parada encarando a cena sem saber o que fazer alí. Sim, as crianças da minha família, pelo menos maioria, ainda acredita fielmente em papai noel. Eu mesma acreditava e escrevia uma cartinha pra ele todos os anos, colocava numa meia e pendurava na porta da casa, coisa que minha mãe achava muito feia, mas deixava eu fazer para preservar minha inocência.
E como eu vou preservar a inocência de crianças que acabaram de ver o papai noel deitado fedendo na sala com metade da roupa no chão?
Meu olhar acompanha o das crianças quando ouvimos o barulho da geladeira se fechando violentamente atrás de nós. Dudu sorri simpático olhando para eles, não para mim, e levanta um prato com o que parece ser vários brigadeiros. As meninas instintivamente correm para ele e eu agradeço mais uma vez nesse dia por crianças mudarem de foco tão rapidamente.
Olho para ele e aponto para a porta pedindo que ele leve as crianças para a garagem e ele as guia com uma facilidade incrível, o que é admirável para alguém que nunca lida com crianças.
Mas não posso perder meu tempo contemplando meu namorado e meu amor por ele, tenho que entrar em modo de solução de problemas.
Só preciso de uma boa desculpa para isso ter acontecido.
O cheiro de suor e cachaça é porque o Papai Noel teve que andar o mundo inteiro em uma noite entregando presentes, subindo e descendo de chaminés e isso é cansativo.
Ele dormiu na nossa sala porque estava muito cansado e achou nossa casa muito confortável.
Ele não entregou os presentes antes porque não achou a árvore de Natal, que está na casa da vó.
As renas e o trenó podem ficar invisíveis e é por isso que ninguém as viu por perto.
Ele não pode ficar muito tempo porque como dormiu aqui acabou atrasando a entrega de presentes na... Oceania.
1, 2, 3, 4, 5. Só tenho que explicar isso para meu tio. E conseguir o acordar. E colocar sua roupa. E convencer que isso é muito importante para as crianças e ele tem que fazer querendo ou não.
— Tio? Leo? — ele continua roncando e não parece que está me ouvindo de forma alguma — Tio... — não me responsabilizo pelo o que faço em seguida e se ele me perguntar direi que foi um duende que saiu correndo. Um elfo de Natal.
Dou um tapa na cara dele.
E ele acorda.
A raiva em seus olhos me faz dar vários passos para trás e prender minha respiração, mas ele só passa a mão do rosto e continua me encarando.
— Então... — sorrio para ele, tanto o fazer ficar mais calmo, e mostro bastante que me rosto está roxo e inchado, pensando que ele poderia ficar com pena — as crianças estão se perguntando porque o Papai Noel não apareceu... e Hannah e Allanah viram você deitado aqui.
— E dai?
— E dai que você vestiu essa fantasia horrorosa pra agradar elas né?
— Ontem, hoje é outro dia. Já passou — ele começa a se virar para o outro lado e eu continuo tentando.
— Mas não é assim na cabeça deles, pode só, por favor, aparecer por dois minutos e entregar os presentes?
— Dois minutos, é? Acha que eu tenho a sua idade? Que nasci ontem? — a voz dele começa a ficar mais alta e meu corpo sente o perigo. Meu instinto de lutar ou fugir, que esteve dormindo a noite toda, começa a acordar e escolhe que aqui o melhor é fugir.
— Só falar que você estava cansado, dormiu aqui porque a casa é confortável e que precisa correr para entregar os presentes das crianças na Oceania, ou eles querem que as crianças fiquem sem presentes? Isso é coisa de meninos maus — eu tento, mesmo com meus pés se virando sozinhos para a porta e quase me obrigando a ir embora.
— Sabe, Juliana, essa mentiraiada toda não é bom pras crianças não.
— Aí cabe aos pais delas decidirem, só estou tentando ajudar — eu sei que realmente não é bom, e com meus filhos eu não pretendo fazer desse jeito, mas minha família faz assim há muitos anos e não é no meu ano que vai morrer a tradição.
— Ok.
— Sério? — falo, incrédula, e ele ri da minha reação. Não sei se ele gosta muito de mim.
— Sim, to indo agora. Mas esse é seu último favor do ano.
— Tudo bem por mim — sorrio, pensando que temos menos de uma semana de ano. Ele percebe meus cálculos e faz uma careta.
— E do ano que vem também, nada de ficar me ligando pedindo pizza de graça — faço biquinho, uma das coisas que mais amo é ligar de madrugada pra ele mandar um pizza de palito, comemos todos juntos e depois dormimos bem.
— Entendido.
Me viro de costas para não encarar enquanto ele arruma a roupa, mais para o bem da minha saúde mental do que para o dar privacidade e só me viro novamente quando ouço a porta da sala abrir. Ele levanta a mão em um "joia" e começa a gritar "ho ho ho".
Respiro fundo e sorrio. Esse pode ter sido o menor dos problemas da noite e o mais fácil de se resolver. Pode ser que eu tenha julgado meu tio como uma pessoa horrível, mas não é tanto assim. Só um pouquinho. Parece que eu realmente faço uma tempestade em copo d'água de vez em quando.
Ou de vez em sempre.
Olho pela janela da cozinha meu tio levando minhas primas para a casa da vó, onde provavelmente todas as outras crianças estão para entregar todos os presentes de uma vez e Dudu suspira aliviado quando eles somem depois da esquina. O prato que antes estava cheio de docinhos, não tem mais nada. Eu poderia ter vários pensamentos na cabeça por causa desse momento, mas só consigo ficar triste que não comi rabanada e agora não tem nem mais nenhum docinho pra mim. Não tem salvação esse Natal, de verdade.
Acho que depois de tudo que aconteceu hoje se ele não me deixar, vamos ficar juntos para sempre.
E pensando em como ele lidou com as situações, me protegeu, conversou com todos, ajudou meus primos, entendeu que alguns deles são simplesmente doidos, se esforçou para ser simpático, ficou com as crianças, cuidou de mim... eu consigo viver com essa ideia

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Então é Natal
RomanceO Natal é o feriado preferido de Juliana desde que se entende por gente, é completamente apaixonada pela decoração, músicas, a ideia de um velhinho bondoso que presenteia crianças, e, principalmente, rabanadas. Ju sempre sonhou em ser a anfitriã de...