Décima nona carta - Ana

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Pedro,

Sabe o que eu fiz domingo? Visitei meu pai no cemitério. Estava fazendo um mês da morte dele.
Levei sua carta dentro da bolsa. Tinha pensado que ele gostaria de ouvi-la. Eu só não sabia se devia ter em voz alta ou bem baixinho.
Nem precisou. Quando chegamos lá (minha mãe e meu irmão também foram) levando as flores que ele preferia, senti que ele poderia ler sua carta sozinho.
Ele gostava de ler, já te disse. E gostava de cartas, sempre gostou. E iria gostar de você, se tivesse te conhecido. Ficamos lá por algum tempo. Fiquei pensando naquelas pessoas todas adubando o nascimento das próximas, como você disse. Gostei de pensar assim. Meu pai tinha um sítio aqui perto e, muitas vezes, acordava cedo e plantava, regava, adubava. Nada mais justo, então, que se transforma em raiz, irrigação, energia.
Te agradeço pela carta e pelo jeito novo de ver as coisas. Me sinto uma semente germinando, sabia? Crescendo, saindo da terra.
E te esperando. Não quero te perguntar quando você vem, mas quero que venha.
Te juro que faça poucas perguntas. Gostaria de não fazer nenhuma, mas para que prometer uma coisa que sei que não vou cumprir? Sou perguntadeira, sempre fui. Vou guardar as perguntas na bolsa, junto com a sua carta (sempre ando com sua última carta na bolsa).
Talvez você faça como meu pai e descubra o que o meu silêncio diz no canto de uma bolsa fechada.
Quando você vier, sabe que nós vamos fazer? Pegar o jornal e olhar, um por um, todos os filmes de todos os cinemas. Em algum deles deve estar passando nunca te vi... Sempre te amei. E aí a gente vai, não vai?
Eu te levo. Ou você me leva. Sabe o que mais? A gente procura um lugar bem legal para conversar. Um lugar, sei lá, pequeno, gostoso. Onde você fique à vontade para se revelar “um autêntico tagarela”. Quero acreditar que “o tempo faz barulho”, sabia?
Essa sua inspiração me lembra um livro que meu irmão andou lendo, a pedido da professora: o barulho do tempo. Coisa de criança. Fala sobre o menino que quer ver o tempo passar e não consegue.
Bem que eu queria também. Só que era de outro jeito. queria ver o tempo voando nas horas ruins e parando nas legais. voando numa aula de matemática e parando numa sessão de cinema. Na última. Naquela em que a gente começa a ficar com sono, se encosta na cadeira ver fecha o olho e sonha. Mesmo com barulho de cinema, que não se esconde, como tempo. Qualquer um pode ouvir.
Quando você vier e nós fomos assistir nunca te vi... Sempre te amei, vamos na última sessão, tá legal? Quero me encostar em você. E sonhar com quem? Vê se adivinha.
outra coisa que a gente pode fazer essa aí por aí, sem rumo, visitando umas papelarias. Adoro. Mesmo sem comprar nada.
Será que você topa? Adoro entrar, mexer em tudo, descobrir adesivos (minha mãe fala “decalques”, sabia?) Selos, borrachas, lapiseiras, canetas, bloquinhos, papéis de cartas, tudo incrível!
Uma vez te mandei uns adesivos no cartão, lembra?
Coloquei sua letra no princípio e a minha no fim. P e A. Bonito, não? Pode ser , que é um troço super legal, e AP, abreviatura da casa de todo mundo que um dia bem pode ser também a da nossa, não pode? A e P. Ana e Pedro.

Te falo essas coisas brincando, ainda que te goste muito.
Não sei se quero morar com alguém. Acho que não. Quero só namorar. Quero dizer assim: esse é o Pedro, meu namorado. Mais fácil, não é? Muito mais.
Tenho medo dessas coisas que precisam durar sempre. “até que a morte nos separe.” Já pensou? E se os dois forem infelizes e não morrerem? vão ficando cada vez mais infelizes? Pode ser que eu mude de ideia, mas por enquanto que sinto é muito medo.
Ah, Pedro, eu não vivia dizendo que te achava com jeito de poeta? Sua confissão, agora, me deixa duplamente Feliz: eu tinha razão e você ainda fez no poema (lindo!) Para mim.
Você viu o eclipse no dia 16 de agosto? Eu vi, apesar de dizer aqui em São Paulo nunca se ver nada, por causa da poluição e de outras desgraças. Vi tudo, do princípio ao fim.
O pessoal do prédio desceu para rua, uma garota até fotografou. usou mil lentes, ficou um barato. Ela mostrou para a gente, depois.
Ficamos lá embaixo até de madrugada, vigiando a lua e fazendo a conta da idade de cada Um no próximo eclipse, já no século 21.
Adorei seu poema. Mostrei para Sônia, aquela garota que lê suas cartas, acho que já te falei dela. Ficou morrendo de inveja. Será que você não conhece aí em Belo Horizonte um outro poeta que queira se corresponder com ela? Se conhecer Me manda o endereço dele que eu passo para ela, tá legal? Não te mando antes o dela porque tenho medo de que você comece a lhe escrever. E aí, além de ficar sobrando, vou morrer de ciúme.
Pois é, sou ciumenta. Pode ficar sabendo desde hoje.
Obrigada pelo poema. Ando com ele colado no meu fichário. No meu pensamento também.
Te espero e espero a camiseta.

Um beijo superciumento da...

Ana
Sampa, 7-10-89

P.S. sabe com quem sonhei ontem? Com Luiz Salles. Também, pudera. Li tudo sobre 65 dias em que esteve sequestrado e agora ele não me sai da cabeça. Nem quando durmo. Se pudesse, iria visitá-lo.
Queria fazer milhares de perguntas...

Beijo.
ANA T.

Ana e Pedro cartasOnde histórias criam vida. Descubra agora