Vigésima primeira carta - Ana

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Pedro, Pierre, Peter, Petrus,

sonhei com você chegando. Sonho lindo, sabia?
Em vez de você aparecer no “hall” (não gosto muito dessa palavra, prefiro “entrada”), em vez de você aparecer na entrada do meu prédio com um livro debaixo do braço, fui te esperar na rodoviária. Lá no terminal Bresser, onde chegam os ônibus de Belo Horizonte.
Te reconheci na horinha em que te vi. Você desceu a escada do ônibus e me olhou. Eu olhei sua camiseta preta e li:

“sou bandeirante quanto te descubro
Mágico quando te invento
E pássaro quando te mergulho”.

Quando acabei de ler, a gente se abraçou.
Aí, você apanhou a mochila que havia caído no chão e disse: “depois te dou a camiseta do eclipse. Tia Ivany fez um embrulho de presente, legal, e a gente vai ver com calma. Isso aqui é muito confuso”.
Achei engraçado você dizer que o terminal Bresser é confuso. Lá é tão pequeno, parece rodoviária do interior. Nem tem escada rolante...
Meu sonho não disse, mas talvez você estivesse pensando em Peçanha, aquela cidade perdida  nos sossego do mapa de Minas, lembra?
Puxa, Pedro, há muito tempo já que a gente se escreve, não é? Estive relembrando nossas cartas (tenho só cópias das minhas, sabia?). A primeira é do dia 22 de Novembro e hoje é dia 19 de Outubro! Fiquei espantadíssima.
Será que somos pessoas tão interessantes assim?
Comecei a te escrever pensando em trocar cartões-postais, lápis, selos, essas coisas.
Você me respondeu falando em Atlético Mineiro, sorvete e beijo no cinema.
Acho que foi por aí que começou a me conquistar.
Menos pelo sorvete, mas pelo futebol e pelo beijo.
Não te contei na época, mas te conto agora: comecei a ler as páginas de esportes de todos os jornais. Meu irmão me olhando e não entendendo nada. Meu pai, corintiano convicto, dizendo: “e ainda diz que futebol é coisa de homem”. Minha mãe, mais atenta, arriscando: “Isso deve ser influência de algum rapaz!!!”.
Rapaz é uma palavra engraçada, não é? Meio fora de moda.
Depois, nas cartas seguintes, você foi continuando: biquíni, beijo apertado ecologia, passarinho, caneta, filósofo grego, mão no queixo, ciúme, José Wilker, “footing”, encontro, saudade, avó morrendo - vivendo nas nuvens, carta de alforria, planos, viagem, chegada, livro debaixo do braço.
Fiquei achando o maior charme essa história de livro debaixo do braço. Ninguém chega de viagem assim. Ou chega?
Não te contei na época, mas te conto agora: fiquei dias e dias, noites e noites tentando adivinhar que livro você traria. João Ternura? Seria o jeito mais evidente de você dizer “sou o Pedro”, não é?
As pessoas que não se conhecem costumam descrever as roupas que vão usar no primeiro encontro.
Não precisamos de nada disso.
Tenho milhares de maneiras de te reconhecer. Uma delas é o meu sonho de ontem. Basta um poema numa camiseta.
Outra seriam os livros debaixo do braço. Tantos, além do João Ternura.
Outra maneira sútil e inteligente seria uma caneta- tinteiro (Parker 51, de preferência) presa no bolso da camisa. Topa?
Uma outra, não tão sútil, mas certamente carinhosa, seria você aparecer na minha frente com uma caixa de caquis super maduros!... Ja pensou que delícia?
Mais uma: você vir vestido com o uniforme do ATLÉTICO... Topa?
Outra: você vir fantasiado de filósofo grego. Com a mão no queixo, claro.
Só tenho um medo: você se esquecer de desinventar o Big Ben quando a gente estiver juntinho, no escuro do cinema.
Mesmo não sendo professora de geografia, quero você inteiro sem divisões nem misturas. E quero que você me queira do mesmo jeito.
Pedro, sabe que eu achei um barato essa história de Big Ben? Pensei que você fosse dizer que ele era um lápis, porque você gosta de escrever.
Que nada. Ele é muito mais. É você andando no tempo. Porque Big Ben é um relógio, não é?
Achei bonita a conversa do menino com o pai. Li duas vezes aquele pedaço em que ele fica vermelho por causa da professora de geografia e o pai passa a mão na cabeça dele.
Quando você vier, com livro debaixo do braço ou com caixa de caquis, você passa a mão na minha cabeça? Adoro quando me fazem isso.
Um dia, num táxi, eu estava super cansada. Era de noite, fazia frio e meu irmão estava comigo. Me encostei no ombro dele, ele me abraçou e ficou passando a mão nos meus cabelos. Parecia que ele era mais velho que eu.
Neste dia, isto é, nessa noite, fui no quarto dele na hora de dormir. Dei-lhe um beijo e passei a mão nos cabelos dele. No outro dia, na hora do café, senti que éramos muito mais irmãos.
Já que hoje estou te confessando coisas, quero te dizer que te invejo por você saber escrever.
Nunca fiz nem um poeminha de nada, sabia?
Fico pensando que se ler é bom, escrever deve ser melhor ainda.
A gente inventa, desinventa (como você fez com o Big Ben), rasga, joga fora, começa de novo.
Nunca fiz nada disso. Só uma redação de vez em quando e, agora, essas cartas.
Gosto de te escrever. Te escrevi algumas cartas tristes, mas era assim mesmo que elas tinham de ir.
A gente deve escrever o que sente, do jeito que sente.
Te escrever sempre me fez bem. Comecei brincando, como já lembrei hoje, e acabei assim, me apaixonando.
Te querendo, como na dedicatória do João Ternura. Te esperando na entrada do meu prédio ou na rodoviária pequena, sem nem escada rolante. (Agora, só escrever não chega. Quero te ver, te abraçar, te ouvir. Preciso.)
Fui te escrevendo e crescendo. Nossas cartas foram ficando mais sérias, mais maduras. Você percebeu?
Deve ter sido o tempo passado. Perdi um amigo, um pai, o Brasil perdeu a Nara Leão, você lembrou suas perdas, a gente quer namorar pra valer, tudo isso cresce a gente, não cresce?
Só quero te dizer mais uma coisa: te amo.

Um abraço crescido da Ana

P.S. Tomara que no próximo sonho você me sequestre...
P.S. Vou te mandar o endereço da Sônia, mas junto vai um aviso: Quem vai escrever é o Pompeu. Se você escrever, juro que nunca passo a mão na sua cabeça. E jogo a caixa de caquis no lixo.
Ela mora na minha rua:

Rua Pintassilgo, 13, casa 2.
Moema - S. Paulo
Ah o nome dela é Sônia D. Fala com o Pompeu que agora é a vez dele de adivinhar o resto...

Beijos da
ANA T.
S. Paulo, 19-10-89

Ana e Pedro cartasOnde histórias criam vida. Descubra agora