Vigésima carta - Pedro

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Ana sempre querida

A camiseta está fazendo maior sucesso. Já vendi quase todas. O importante é que a grana já dá para chegar aí. Com a venda das camisetas aprendi alguma coisa sobre as artimanhas do comércio. Sei, por exemplo, que sem capital de giro a coisa não anda. Virar capitalista é fácil. É só ter capital e competência. Não vejo a hora de ir à rodoviária e dizer para todo mundo ouvir: "quero uma passagem para São Paulo, vou ver Ana T.". O duro de tudo isso é que precisa de licença para viajar. Ainda sou de menor, embora vote para Presidente. E como explico para pai e mãe que vou a São Paulo? Há jeito para tudo. Viro lobisomem se preciso. Vento ou fumaça caso queira. E como assunto é nobre, tudo é possível.
Só não posso dizer o dia em que vou, porque, contanto empecilho pela frente, fica difícil prever as coisas.
Ah, Ana, tem uma novidade que quero contar sobre a camiseta e sobre o poema. Tia Ivany tem uma confecção e achou legal a ideia da camiseta. E quero investir em minha/nossa ideia e criar uma outra camiseta mais produzida e sofisticada, para um público diferente. Essa minha tia é um barato e o nome da sua confecção é de dar água na boca: "BATAUÁ", palavra indígena que significa "palmeira".
E vai ser com a tia Ivany que vou conseguir sair de Minas gerais.
Ela vai me dar a carta de alforria. Aí podemos passear sem rumo pelas ruas. E nos perder nas ruas e adivinhar as esquinas. E, se possível me perder em você. Topa??
muda de assunto. Você já sabe da minha mania que é escrever e me esconder sob pseudônimos. E agora quero revelar a história do Big Ben, que assinou o poeminha do eclipse. Conto para você como o Big Ben entrou em minha vida, em nossa vida. A história inventada. Conta um sonho muito estranho que tive com meu pai. Quem sabe este pai que é personagem e sonho não é seu amigo, o seu pai, ou meu avô? Vamos a pescaria, isto é, à história, que se chama "Fisgando a vida"

Fisgando a vida

A lua redonda e Clara iluminava o Rio. Meu pai, de repente, sai de seu silêncio e resmunga: "porcaria de Brasil".
Meu pai ali, anzol e linha, e nada de peixe. "Droga de rio, acabaram com tudo"
- porcaria de Brasil? - perguntei. - você não gosta do Brasil?
-quando a gente chega de porcaria o Brasil, a gente não está xingando a terra do Brasil,os rios do Brasil, os animais do Brasil. A gente xinga as pessoas que destroem as coisas do Brasil.
- Sei - respondi, embora não houvesse compreendido bem explicação de meu pai.
Como é que se pode xingar alguém que a gente gosta? Pode sim. Agora sei que pode. também o meu Atlético mineiro quando perde. Fala até palavrão. E depois os olhos enchem de água e fico perguntando para mim porque o time da gente perde. Dá vontade de nunca mais torcer, de nunca mais ir ao campo,de largar tudo. Queimar as camisas e as bandeiras. A gente diz "porcaria de time", mas depois se arrepende e, quando se vê, estamos de novo torcendo e gritando, e o nosso time é o melhor do mundo.

- Sei, pai, Sei sim - respondi com convicção.
- Os Gringos chegam, comem tudo, acabam com tudo, ficam riquíssimos e depois vão embora.
- E quem são os gringos
- Gringos são os que prejudicam os outros.
- Pensei que fossem estrangeiros - Falei, puxando conversa.
- A maioria vem de fora. Mas há muito brasileiro que é gringo.
- Mamãe é gringa? - perguntei, só pra provocar papai.
- Às vezes - respondeu. - Às vezes - Falou rindo. - Você sabe quando ela é gringa, não sabe?
- Claro, claro que sei quando mamãe é gringa. É quando ela exige que eu lave os olhos. Faça o dever de cada. Durma cedo, essas coisas.
- Agora, ela sabe quando também somos gringos, não sabe?
- Poucas vezes somos gringos, não é verdade?

O meu pai riu de minha resposta.

- Quem mais é Gringo?
- Uma porção de gente - respondeu meu pai, querendo encerrar aquela prosa. E pegou o fumo e a palha e começou a fazer um cigarro. Insisti na conversa:
- Os bandidos do faroeste são gringos?
- Claro que são.
- E Emília?
- Qual Emília?
- A do sítio do Pica-Pau.
- Ah, Emília, apesar de boneca, nunca foi gringa.
- E os Beatles?
- Também não
- E o dono da Fábrica no outro lado do rio?
- Esse é gringo duas vezes.
- Duas vezes?
- Duas vezes. É gringo por não ser brasileiro e gringo porque está prejudicando os brasileiros.
- Mas a fábrica não é coisa boa? Seu Isidoro peixeiro me falou dos empregos que ela dá.
- Ele dá e tira. Tira mais do que dá.
- Que conversa mais maluca, pai.
- Ele dá emprego para umas 100 pessoas e no entanto o esgoto de sua fábrica é cheio de material químico que mata os peixes e assim ninguém mais pode pescar e comer o peixe. E temos milhões de pessoas que vivem de peixe. Está vendo aquele riozinho que deságua no rio?. - Meu pai apontou com o dedo, um braço de rio. - Pois é, aquele riozinho tinha 20 metros de profundidade. Era onde os surubins subiam para a desova. Hoje aquele riozinho tem apenas 20 centímetros, o resto é lixo da fábrica, detrito químico, e nenhum Surubim desova mais.

- Que sacanagem!
Meu pai riu de minha expressão e completou:
- Grande sacanagem!
- A professora de geografia é gringa?
- Não sei. Não a conheço.
- Ela fala igual ao senhor.
- Será?
- Isso da Fábrica, dos peixes.
- Sei. Então aposto meu molinete contra seu time de botão que ela não é gringa.
- Aposto não.
- Você gosta dela?
- Gosto.
- Gosta da professora ouu da geografia?
Não pude mentir. Fiquei vermelho. Meu pai entendeu. Passou a mão em meus cabelos e, satisfeito, falou:
- Seu safado!
Contra ataquei perguntando pro pai se o Brasil tinha jeito. Ele ficou pensativo. Fumou a palha, tirou o chapéu, coçou a cabeça. Olhou para mim. Olhou para o rio. Balançou a cabeça e, em vez de me responder, perguntou:
-Por que você pergunta isso?
- É que...
- Já sei, a professora de geografia falou uma porção de coisas sobre a devastação da natureza, sobre a poluição dos rios e do ar, sobre a matança indiscriminada de animais, sobre a reforma agrária. Falou ou não falou?
Respondi perguntando:
- E como sabe que ela falou isso?
- Claro que sei - falou meu pai orgulhoso. - Ela não é gringa, ou é?
- Claro que não - respondi prontamente, defendendo a minha professora.
- Então seu time de botão é meu.
- Ah, pau, eu não apostei.
Meu pai riu gostoso e mudou de conversa:
- Vamos tentar mais uma vez?
- Claro!
E fiquei de anzol em punho pensando nas coisas todas da vida. Nas coisas da professora de geografia, no rio que não dava mais peixe. Era tudo tão confuso. Tão complicado que antes eu achava tudo fácil: brincar, comer e dormir e agora estava sabendo que não é só isso. E eu ali na beira do rio, ao lado de papai, tentando, pela primeira vez, fisgar a vida.
Papai, que até então estava alegre, ficou amuado. Passou a mão no rosto muitas vezes. Olhava para mim querendo falar alguma coisa. Mas não falava. Peguntei:
- O que há, pai?
- Nada, filho, você não tem culpa de nada. É que estou apertado. Perdi o emprego. Mas as coisas vão se ajeitar. Tudo é possível.
- Posso ajudar?
- Carece não. Há uma coisa que preciso te falar, mas não sei como. A vida poderia ser apenas rio, peixe e rio. Mas não é.
- Mas poderia ser, né, pai?
- Não é. E você precisa saber que...
- Já sei. Mamãe me contou. Irmã Sol, prima de mamãe, arrumou um colégio interno.
- Sua mãe é gringa mesmo - falou meu pai rindo e, ao mesmo tempo, aliviado.
- Tem galho não, pai. Big Ben vai comigo.
- Big Ben?
- Big Ben é um cara que inventei e ele vai comigo.
Meu pai, todo animado e feliz, esticou a conversa:
- Me fale mais do Big Ben.
- Big Ben é um cara legal, que dorme comigo, que almoça comigo, joga bola comigo e agora está pescando comigo.
- E namora também a professora de geografia? -Caçoou papai.
- Ai não. Aí eu desinvento o Big Ben.
- Quero ver esse Big Ben.
Tirei do bolso uma folha amassada de papel e mostrei pro papai uma história do Big Ben.
- Nada mau. Com o tempo o Big Ben ficará melhor.
Meu pai mudou o tom. Gostou do Big Ben, tenho certeza. E falou com tristeza na voz:
- sentirei sua falta.
- Que nada. Colégio interno é o fino.
- E a professora de geografia?
- Sei não.

Tudo era sonho, aventura, descoberta. Pena a professora de geografia não ir. Big Ben iria: eu não estava só. Mas meu pai estava triste.
A tristeza de papai era do tamanho da lua, que não parava de iluminar o rio.

Gostou? Demorei dias e noites para escrever essa história. Escrever é ter paciência e esperar. Um dia a história acontece. Agora o que preciso mesmo é me encontrar com você no escuro do cinema pra ver o filme do nosso encontro.

Beijos
Pedro

P.S. Você me disse da dor do sequestro do Luiz Sales. Acho uma violência esse nosso mundo. A miséria ao lado da especulação dos poderosos é que provoca essas coisas. E para amenizar esse papo acho que vou sequestrá-la e guardá-la no meu coração.

P.S. Pompeu, que lê a nossa correspondência, achou legal a proposta de Sônia. E Pompeu quer logo começar a viagem. E é ele que quer escrever primeiro, por isso preciso do endereço da Sônia.

Pedro.

Ana e Pedro cartasOnde histórias criam vida. Descubra agora