Décima Primeira carta - Ana

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S. Paulo, 28-6-89

Ah, Pedro,

Se eu não andasse triste nos últimos dias, sua carta teria me deixado nas nuvens. Li várias vezes, o coração batendo forte. E depois de um beijo demorado no seu nome, no fim. Acho que você também me beijou.
Bem de noite, dormi com ela debaixo do travesseiro. Fiquei pensando que isso talvez me ajudasse a sonhar com você. Não aguento mais de vontade de te ver. Não te vo. Não sonhei com você de jeito nenhum. Nem de camisa azul. Seria legal, não seria?
Guardei a carta na mochila e estou andando com ela para lá e para cá. Na escola, no ônibus, no supermercado onde foi comprar uns tomates para minha mãe fazer sanduíches preferidos do meu irmão. Acabei comprando caquis também. Você sabe o por quê.

Hoje à noite vou tirar a carta da mochila. Outro dia, minha professora de Inglês foi assaltada e levaram tudo. Documentos, talões de cheque, dinheiro, agenda, fotos, bilhetes.
Se levare sua carta, fico mais triste do que já estou.
Ando triste por muitos motivos. Nem sei se vou conseguir te falar tudo. Mas o principal você vai entender.
perdi um amigo, no último dia 10. Acidente de carro. Óleo na pista, abismo, hospital. Nada que pudesse ser feito.
Todo mundo gostava dele. Era um cara legal, para cima. Um cara que fazia bem para gente. Meio poeta, assim como você. Um dia, Sem Mais Nem menos, ele me disse: “Não há meio das coisas seguirem junto com o homem. ”
Quando ele me disse isso, não dei muita importância, nem entendi direito.
Agora, depois que ele morreu, essa frase fica diferente, não fica? parece que ele queria dizer outra coisa. O pior é que eu penso, penso E não adianta nada, porque não tem mais jeito de conversar com ele.
Outra pessoa que morreu foi a mãe de uma amiga minha. Semana passada, dia 23. Ela morreu no interior, mas a minha amiga vai mandar celebrar uma missa aqui e eu vou. Eu gostava muito da mãe dela e ela também gostava de mim. Vivia dizendo que rezava para mim num terço que eu tinha levado para ela, há muito tempo. Agora é a minha amiga trouxe o terço de volta, e eu lhe disse: “fica pra você”.
E tem também a Nara Leão, que o pessoal mais velho curti muito, não é? Lá em casa, meu pai e minha mãe só admite tirar o disco da Nara da “radiola” (minha mãe fala assim, você acredita?) Se for pra trocar por um do Paulinho da viola: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”.
A Nara morreu dia 7. Três dias antes do meu amigo, que também gostava dela.
Meu pai disse várias vezes que esse mês de junho tá muito pesado .
a professora de inglês também. Você sabe que, depois da bolsa, ela ainda ficou sem relógio e uma cordão de ouro? O pior é que foi aí em Belo Horizonte.
Ela foi visitar uns parentes e roubaram relógio dela na rua, à noite . Um cara passou correndo e, quando ela veio, o braço estava vazio.
Poucos dias depois, não sábado de manhã, ela foi fazer compras (na praça Raul Soares, se é que eu entendi o nome direito) e ficou sem o cordão de ouro com coraçãozinho muito legal, presente do namorado.
Toma cuidado, viu? Guarda seu relógio e esconde o cordão, se você tiver. Outra coisa: você mora perto dessa praça Raul Soares?
Eu estava pensando em ir até aí nas férias, mas tô perdendo a coragem. E se sumirem comigo?
Minha turma vai fazer uma excursão nas cidades históricas, e talvez fosse uma boa, não?
Preciso conversar em casa, ver se o dinheiro dá, essas coisas.
Eu queria tanto te conhecer. Começar a trabalhar também. Já pensou que barato ter o próprio dinheiro? Viajar, comprar discos, livro, chicletes, o que te der na cabeça?
Se eu for aí, como é que te encontro? Tenho seu endereço, é claro, mas acho que me falta coragem para tocar a campainha da sua porta e dizer: “ Sou a Ana”.
E se não for você do outro lado? E se perguntarem “Que Ana?” Se eu responder “Ana Ternura”, fica pior ainda.
Ninguém acredita que meu nome é de verdade.
Quando eu era pequena ia brincar de faz-de-conta, brincava de Ana T. Todo mundo achava que eu era de mentira. Quer dizer, que a ternura era de mentira.
Ando querendo outras brincadeiras. Sei que sou de verdade, que sonha e que fico triste.
Sei principalmente que também te amo.

Muita Ternura da

Ana T.

Ana e Pedro cartasOnde histórias criam vida. Descubra agora