seis

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Marjorie Mildred

No domingo, quase não consegui olhar para o rosto de meu pai. Tive sorte que ele foi chamado para uma reunião de última hora no trabalho um pouco depois das dez da manhã, assim pude me entregar ao mar de melancolia que estava sentindo. Deitada na cama, de barriga para cima, as mãos cruzadas sobre o peito enquanto fitava o teto, deixei que um suspiro pesado escapasse por meus lábios.

É, James Mildred. Você definitivamente não é quem diz ser, pensei.

Sentando-me no colchão, me levantei, caminhando até a cabeceira. Segurei a caixa pesada nos braços e desabei novamente em minha cama. Cruzei as pernas e fiquei observando o objeto retangular em minha frente. Inspirei e expirei. Repeti o movimento umas três vezes antes de abrir a tampa.

Segurei o livro nas mãos, sentindo-o pesar sobre minhas palmas. Abri e folheei-o como havia feito no dia anterior, só que com um pouco mais de cuidado e sem pressa. A primeira página inteira estava escrita em italiano. E as seguintes também. O livro inteiro. E por mais que eu fosse familiarizada com o idioma por conta de minha mãe, não era fluente. Então demorei duas horas para conseguir traduzir o primeiro capítulo — com a ajuda do meu Notebook e do Google.

Percebi que se tratava de uma história. Era sobre um garoto que se chamava Brennon. Debruçando-me sobre minha tradução um pouco desleixada, comecei a ler, sussurrando a primeira frase, sentindo calafrios subirem por minha coluna:

— Tudo se inicia em uma aldeia, há muito tempo atrás. Um garoto incompreendido e uma maldição. Brennon Flint era conhecido como O Amaldiçoado

* * *

EM UMA ALDEIA DESCONHECIDA, há centenas de anos atrás.

Brennon voltara para casa naquele dia com outra concussão no rosto. Sua mãe sempre lhe alertara sobre sair depois das cinco horas da tarde, mas o garoto não se importava. 

Ele queria ir até o refúgio que havia feito na floresta, uma casa de madeira no topo de uma árvore alta. Escalar apenas usando as mãos e seus sapatos era outro fator que contruibuía para que todos os achassem estranhos. As crianças não queriam tê-lo por perto e os seus pais murmuravam sobre como ele e sua mãe não deveriam estar ali. Porque eram diferentes. E o novo sempre era inaceitável, mesmo há muito tempo atrás.

Naquele dia, em particular, a mãe de Brennon parecia um pouco mais exausta. Seus passos pelo carpete puído de madeira de sua humilde casa eram arrastados e seus ombros estavam mais curvados. Brennon sentou-se em um banquinho de madeira, e sua mãe, com um pano úmido nas mãos, se agachou à sua frente e começou a pressionar o sangramento em seu lábio inferior.

Soltando um longo suspiro, ela murmurou suavemente:

— Tem que parar de se meter em brigas.

— São eles que vêm atrás de mim, mama.

— Evite-os. Não fique no mesmo lugar que eles. Não saía depois que escurecer. Não olhe para eles. Não provoque-os.

— Não provoco eles — Brennon retrucou, gemendo quando sua mãe pressionou o pano com um pouco mais de força. Aquele machucado havia sido cortesia de um garoto de sua idade. Um soco. Tudo isso porque ele tentou pegar um pouco de água na reserva para que sua mãe pudesse fazer uma sopa de cogumelos, sua favorita.

— Pessoas especiais como nós não são aceitas, filho — Gwendolyn, sua mãe, disse. — Vão nos perseguir pela cor de pele errada. — Brennon fitou o dorso das mãos, observando o tom cinco tonalidades mais escura que as de outras pessoas de sua vila. — Pelas roupas erradas. — Desta vez, os olhos amendoados do garoto dispararam para as botas de couro surradas que usava. Já fazia mais de um ano que as tinha, não sabia como poderiam lhe servir ainda. — Pelos dons incomuns… — ela sussurrou, pousando a mão carinhosamente na maçã do rosto de Brennon.

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