6. SOBRE AS NUVENS

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Crânio mergulhou nos estudos. Física, computação, problemas de xadrez

tornaram-se para ele não um modo de aprender, mas de esquecer. Esquecer os

Karas, esquecer Magrí...

Era noite. Tarde. Montou no tabuleiro um problema de xadrez. O rei negro

leva mate frente à dama branca. Em três lances. "Os três lances já foram jogados,

Magri... O reí já caiu. .."

***

Dona Iolanda dormia placidamente na poltrona do avião, depois da refeição

servida pelas comissárias de bordo.

Ao lado da professora, sentada na poltrona do corredor, Magrí tirou os fones

de ouvido e ficou olhando, desinteressada, o filme que era exibido a bordo do avião.

Um filme agora mudo como uma comédia antiga. Uma comédia triste de Chaplin...

Atrás do bigodinho, Magrí imaginava uma carinha especial. Um "Karinha"

especial. .. O seu Kara. Seu? Como ele poderia ser seu? Como ela poderia ser dele?

E os outros dois? Ai, o que fazer?

Levantou-se da poltrona, sentindo os músculos dormentes pela longa

permanência no avião e pelo esforço em fingir a contusão no tornozelo.

Toda a cabine estava às escuras.

***

"Preciso relaxar, dormir. Amanhã eu tenho ensaio... preciso dormir...

dormir... Dormir, talvez sonhar... e, nesse sonho, sonhar que tudo está acabado, tudo

resolvido... Magrí esquecida... Aaaahhh! Esquecida! Que piada! Não, não, não! Não

é o Hamlet que eu vou fazer. Vou fazer o Folial... de 'O Escorial'... Michel de

Ghelderode... um belga... Ainda não sei as falas do Folial de cor... O rei diz: 'Tantas

flores, tantas flores... E eu soluçarei por causa das flores... pela minha querida

rainhazinha...' Magrí... ãhn, ãhn, ãhn... 'Chorarei como tu haverias de chorar por

mim, querida rainhazinha, se a morte se houvesse enganado de quarto... Tem graça!

E ninguém foi testemunha de minhas lágrimas. Ei, Folial! Bufão maldito que não

viste chorar teu rei! Folial, meus cães te devoraram, carne cômica?' Ãhn, ãhn, ãhn...

'Vossos cães são os cães do rei, senhor. Devorariam vossos cortesãos, não vossos

valetes...' Ai, e depois? Qual é a próxima fala? Ãhn, ãhn, ãhn... 'Blasfemador!

Aquela que agoniza é bela, pura e santa! Morre por causa do silêncio e das trevas

deste palácio, cujas paredes têm olhos, e cujos salões de festa ocultam armadilhas e

instrumentos de tortura! Morre porque viveu entre seres sinistros, longe do sol,

seqüestrada e estranha. Morre, rainha sem povo, de um reino que goteja sangue,

onde reinam espiões e inquisidores.' Ãhn, ãhn, ãhn... 'Digo-vos que a morte é uma

benfeitora, cuja chegada desejei, como vós a desejastes. E ela se apresentou

A DROGA DO AMOR - Pedro Bandeira Onde histórias criam vida. Descubra agora