Contarei uma história sobre um garoto que nasceu no início da civilização - não pense em templos ou pirâmides, pois está profundamente enganado. Seu mundo era feito de florestas que sussurravam com vozes antigas e terras onde os nomes das tribos ainda eram sementes não plantadas.
Esse jovem chamava-se Matias, rápido como uma raposa, embora alguns jurassem que suas pernas cortavam o vento antes mesmo de ele decidir correr. Os mais velhos - que naquela época eram apenas amigos com cicatrizes e histórias - contavam que ele uma vez enganou um lobo de faro tão apurado que conseguia farejar o medo através da chuva. A criatura perdeu-se entre os carvalhos, uivando de frustração por três noites seguidas.
Naquela tarde, Matias estava sentado sobre uma pedra lisa, lendo um livro cujas páginas amareladas cheiravam a terra molhada e tinta de carvão. O volume falava de um tempo em que o mundo era um só continente, uma massa de terra tão vasta que o Mar foi a última descoberta. À sua frente, Noemi observava-o com olhares de soslaio, cada vez que se inclinava para recolher uma flecha cravada no alvo - um tronco de ipê marcado por cicatrizes de batalhas passadas. Sua pontaria era perfeita, herdada de uma linhagem que caçadores lendários.
Quando Noemi atirou a última flecha - que vibrou no centro do alvo com um estalo satisfatório -, caminhou até as árvores para recolher as que ainda estavam intactas. Seus dedos deslizaram sobre as hastes de madeira, sentindo as marcas das tribos rivais entalhadas nelas.
- É assim que você se prepara para uma guerra? Com palavras mofadas? - perguntou, erguendo uma flecha quebrada como se fosse uma prova. - Me diga: algum guerreiro venceu uma tribo rival com um maldito livro?
- Essa guerra não é pelos livros? - respondeu Matias, fechando o volume com um baque seco que ecoou na clareira. - Nada mais justo do que conhecer aquilo que serve de motivo para lutar.
Noemi cravou a flecha quebrada no chão, a terra cedendo como carne sob uma faca.
- Você é sempre o mais esperto, sua cobra traiçoeira! - rosnou, aproximando-se até que a sombra dela cobrisse o livro. - Diga que merda isso vai adiantar quando estiver cara a cara com um homem duas vezes maior que você.
- De nada - admitiu ele, os olhos brilhantes como brasas sob cinzas. - Eu tenho dez bilhões de certezas de que não... mas tenho um plano. Se der certo, pense em quantas vidas serão poupadas. Num mundo dividido, até a vitória é semente de vingança. Quando a fúria deles se juntarem, nem líder nem flecha vão deter o fogo que sobrar da vingança dos homens
- Você também é homem - disse Noemi, a voz mais suave agora, como se revelasse um segredo que a queimava por dentro.
- Eu sei - ele sorriu, um gesto rápido como o bater de asas de um pássaro. - Tão humano quanto qualquer um... mas não há ninguém mais esperto ou rápido. Temos uma missão. Aceita vir comigo? Não há volta, mas você vai lembrar disso como a melhor aventura da sua vida.
Um sorriso formou-se nos lábios de Noemi, lento e inevitável como o nascer da sol. Ela não negava o frio na barriga, a fraqueza nas pernas, nem o fato de que sempre seguira Matias - por penhascos, rios e florestas, onde até o tempo parecia perder-se. Desta vez, seguiria até o fim da margem, seja lá o que isso significasse. Afinal, ela ainda não decidira se a Terra era redonda... ou se sequer importava, quando se caminhava ao lado dele.

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A Marca de um Rei
FantasiTempos depois da separação da pangeia, o mundo está dividido em partes desconhecidas, em um desses continentes uma revolução está acontecendo. Matias recebe um dom e parte para uma missão de formação de um único Reino. Por trás de toda a injustiça c...