XVI

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O silêncio na parte traseira da van era insurdecedor.

O colete a prova de bala apertava seu peito e de alguma forma o fazia ter noção de seu próprio peso. Bela e Manuel usavam iguais, porém pareciam mais confortáveis.

Cada um deles carregava um rifle, uma arma suplente em seus coldres e um monte de munições.
Gui continuou com sua arma, não era boa ideia experimentar algo novo no meio de uma invasão.

Mas esse não era o único motivo, até porque ele não ligava se morria hoje ou não, desde que Odruarde fosse primeiro.

O motivo era supersticioso. Ele achava que se trocasse de arma precisaria passar por todo o processo que chamava de "sonhos de mortos", quando você via e ouvia as vozes das pessoas que matou em todo o lugar. Mas isso já estava passando, as coisas estavam se tornando mais fáceis.

Era esse o seu receio, que as coisas voltassem a etapa zero.

O som de metal roçando em metal dançou pelo lugar e a janela no centro do divisório da van foi aberta.

- O sinal - avisou uma voz feminina.

- Vamos acabar logo com isso - Bela disse.

- Tente não morrer, rapaz - Manuel disse.

- Nos vemos mais tarde? - ele questionou a Bela.

- Mais tarde - ela respondeu.

Eles sairam para fora da van. Vários outros veículos estacionaram na estrada.

As pessoas trajavam coletes e carregavam armas.

Gui viu Manuel e metade do grupo cortarem caminho pelo flanco esquerdo.

Uma das partes do plano, ele ouviu Bela dizer, era ataca-los pelas traseiras.

A luz do luar de uma noite límpida iluminava o caminho. O céu era uma uma tela negra polvilhada com minúsculos pontos prateados resplandecentes.

Mais em frente, Gui avistou o hotel que agora parecia uma mansão abandonada com espíritos vagueando atrapalhadamente, tentando perceber o que estava acontecendo, espíritos que nem sabiam oque estava se formando no esterior.

- Lança foguetes! - Bela rugiu.
Mais em frente, Gui viu dois homens se aproximaram com um lança foguetes.

- Esperem - ela voltou a ordenar.

As luzes voltaram a ligar, fez-se silêncio e Bela ordenou:

- Agora.

O foguete deixou um rastro de fumaça para trás e atingiu oque devia ser um estacionamento.
A explosão inicial foi enorme, um amontoado de brasas escarlates e prateadas que cresciam a cada segundo e consumiam o ar, seguido de varias minis explosões provocadas pelos carros.

- Vão. Vão. Vão.

Outro foguete fez o portão explodir em pedaços.

Os homens de Odruarde estavão se agrupando, mas já era tarde para impedir que os rebeldes invadissem.

O poder de fogo deles parecia infrútifero. Os primeiros soldados rebeldes tombavam, mas outros tomavam o lugar.

Bela e Gui entraram pelo portão e ele percebeu que estava ao lado de uma máquina de matar.

Ela apoiava o cabo do rifle sobre a dobra do cotovelo, sua postura era meio contorcido e seus passos rítmicos. Cada homem fardado que se aproximava levava um tiro na cabeça ou no peito. Ela era excepcionalmente boa em tiros de longa distância.

- Cobertura - Ela disse.

Gui sentiu seu peito explodir, ocupou o lugar de Bela e tentou ao máximo dar cobertura enquanto ela recarregava.

Ele precisava atirar duas vezes para abater um alvo, sentiu seu braço enrijecer e entendeu o motivo dos rifles de longa distância.

Ele achou curioso a forma como uma parte de seu cérebro tentava anotar as coisas enquanto a outra estava em alerta máximo.

Bela voltou a atirar, mas desta vez cobrindo os flancos e a retaguarda.

Ao redor deles varios outros soldados rebeldes tombavam. Tiros cortavam o ar e formavam uma melodia desincronizada. Não tardou para Gui começasse a ouvir diversos sons moribundos.

Ele ouviu alguma coisa tilintar à alguns metros de si.

- Granada! - Bela urrou e puxou Gui.

A explosão os jogou para longue.

Ele sentiu uma dor aguda brotar sobre todo seu corpo e estatelou-se sobre alguma coisa estofada.
Atordoado, ele sentiu alguma coisa estranha. Não sábia o que era até respirar - ou tentar.

Ele não conseguia e arfava tentando obter ar. A confusão não o abandonou. Toda a dor que circulava pelo corpo prendeu-se sobre seu peito e explodiu como um balão cheio de cravos, pungindo seus pulmões e garganta. Ele tentou levantar, mas seus braços fraquejaram e voltou a atingir o chão. Suas forças o abandonavam, seu rosto ardia e parte da visão começava a embaçar, um circulo se fechando.

Então ele conseguiu inspirar e o ar preencheu seus pulmões.

Todo mundo acha que consegue sentir o ar entrando e saindo, mas ali, Gui percebeu que não era bem assim. Na verdade, todo mundo só conseguia sentir um pouco do ar, um fiapo de oxigênio.

Quando o ar entrava era bruto e quase tão sufocante quanto a falta dele, ele explodia nos pulmões e distendia o tórax por alguns segundos.

Era doloroso, era gratificante, era a vida voltando ao seu corpo.

Ele ajoelhou-se sobre a grama que havia suportado o impacto e tossiu secamente.

Uma figura se aproximou dele, o segurou pelo ombro e o arrastou até a carcaça de um carro.

- Você não pensa em outra coisa, entendeu? - Bela urrou, sua voz abafada - Foque cem porcento da porra do cérebro no seu trabalho. Se ouvir alguma coisa caindo no chão você corre. Está me entendendo?!

Ele a encarou ainda arfando. Sangue escorria de sua testa, mas esse parecia ser seu único ferimento.

- Vamos, precisamos entrar agora.

Gui ergeu o rosto e olhou ao redor. O lugar estava irreconhecível.

Mortos e alguns feridos se amontoavam no chão. Havia fumaça saindo da lateral prédio e uma cratera fumegante mais em frente.

Gui quis saber como Manuel estava se saindo.

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