XV

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Asoke preparava-se para ir a festa de Odruarde.

Havia dormido mal —  pelo menos tentou dormir, e quando conseguiu cair no sono, sonhou novamente com a voz que ele reconhecia, mas não   dizer o nome de quem era.

Suas costas doíam por ter dormido no sofá da casa mofada e poeirenta. Sua boca tinha um gosto desagradável, provocado pelo almoço feito pela mulher idosa — o que quer que seja verde musgo e cinzento, tenha uma consistência pastosa e sabor de três pares de sapatos velhos.

Durante o dia encontrou com Bela duas vezes, ela não disse nada, continuava aoenas com seu olhar acusador.

Ele sentia-se como um adolescente que acabara de entrar na puberdade e começava a ver as raparigas de um jeito diferente.

Quando as cores perdiam aquele brilho ofuscante e passavam a ser apenas cores e os intrigantes dias de bonança não eram mais motivos de alegria.

Era o mesmo sentimento que teve ao lado de Luena e ao mesmo tempo era completamente diferente.

Mas uma voz dentro de si dizia que aquele não era o momento para pensar nisso. A voz era severa e animalesca e obrigava-o a manter o foco.

Estava usando um fato cinza que a mulher idosa trouxera para ele. Acabou de apertar a gravata e abriu a porta do quarto.

Apenas Gui e o velho da poltrona se encontravam no sala.

O idoso continuava de olhos fechados e Gui estava com o olhar vidrado, encarando o teto. Seus olhos ganharam vida quando avistou Asoke, mas ele não sabia se era uma coisa boa.

Os dois encararam um ao outro, até Asoke resolver falar.

Ele repetiu oque ensaira:

— Olha, eu sei que você me culpa pela morte de Kiiari, e é sim minha culpa, eu não devia tê-la abandonado e isso… isso vai continuar preso a mim, mas você não têm culpa de nada, vá embora e tente recomeçar. Esqueça tudo isso enquanto pode.

Gui ergueu-se, passou por Asoke ignorando-o completamente e desapareceu no corredor, onde Bela se encontrava.

— Você devia ser nosso novo recrutador oficial. — ela disse, sarcásticamente.

— Ele é só um adolescente, uma criança, não é um soldado.

— Igual a sua irmã? Que morreu pelo que nós acreditamos não? Ninguém é só uma criança em Nova Angola, não se pode dar a esse luxo chamado infância.

Ela se aproximou de Asoke, tão perto que podia sentir seu cheiro: biscoitos amanteigados e canela. Era da mesma altura que ele.

Os braços dela tocaram à gravata e com movimentos ligeiros, a indeiretaram. Seus olhos encontraram um ao outro. Asoke viu o seu rosto micróscopico e distorcido refletido nos olhos negros como mármore.

— Pronto? — Bela questionou.

— Pronto e você?

Ela se afastou e fez um gesto com os dedos das mãos apontando para sua roupa.

Usava um fato de treino preto, com barras vermelhas nas laterais, modelado em seu corpo igual uma segunda pele.

— Me faz um favor? — Asoke perguntou.

— Oquê?

— Fique de olho no Gui.

Fez o mesmo percurso de antes para chegar ao Hotel, dessa vez com um motorista diferente e que olhava para Asoke ressentido.

O lugar continuava o mesmo, mas havia perdido seu brilho descomunal. Agora só trazia desgosto, raiva e até mesmo medo.

Foi revistado pelos guardas Cazumbis e sentiu uma dor no peito ao lembrar da vez que a irmã questionou porque eram chamados de Cazumbis.

— O Senhor não foi convidado para cantar hoje. — disse o guarda, verificando sua lista.

— É. Estou apenas como convidado. — respondeu, mas havia receio na voz. O próprio Odruarde o dissera, mas será que havia avisado seus funcionarios.

O guarda verificou uma nova lista. Encarou Asoke dos pés a cabeça e depois afastou-se da porta.

O salão estava mais vazio que a última vez, Asoke calculou que ninguém, nem mesmo os compatriotas, aguentavam Odruarde por três dias seguidos.

Ele caminhou pelas mesas em direção a porta vermelha perto do palco. Agora estava seguindo o plano.

O seu eu do espelho o encarava.
O ematona na bochecha esquerda agora era apenas um marca negra. Tinha o cenho franzido e parecia apreensivo. É suicídio isso, a expressão dizia.

Ele abriu a gaveta do criado-mudo, havia uma pistola com um papel ao lado. Ele retirou os objectos. Colocou a pistola sobre a anca e escondeu com a roupa.

Destrave, mire e dispare, estava escrito em letras manuscritas.

Uma caligrafia pomposa e sútil. Parecia que cada uma das palavras fora escrita com o máximo de cautela possível.

Asoke pensou em tudo isso e então percebeu — só agora que sentia o peso frio comprimindo sua cintura — que nunca havia atirado em alguém. Ele questionou se o que Manuel mostrará era, realmente, suficiente.

A voz debochante de Odruarde mandando que os guardas executem rápido os prisioneiros ressou por sua mente. Ele lembrou do rosto e dos olhos da irmã antes de morrer e depois, caída no chão inerte. Abatida como gado.

Essa lembrança trouxe de volta a dor e a raiva.

Alguém bateu na porta.

— Entre — Ele disse. Amassou o papel e o colocou no bolso.

Luena apareceu sorridente. Estava usando um vestido vermelho sangue que combinava com os detalhes do rêgo em sua cabeça.

— Boa noite — Ela disse — Tudo bem com você?

— Tudo… Senhora vice-presidente — Ele se apressou a acrescentar, enquanto decidia se Luena era tão culpada quanto Odruarde.

Com certeza era.

Ela fez uma careta,  como se tivesse provado alguma coisa amarga.

— Só Luena — disse e piscou. — Odruarde solicitou a sua presença na nossa mesa, gostaria de nos acompanhar?

— Sim. — respondeu.

A vice presidente entrelaçou seu braço no de Asoke e o encaminhou até a mesa.

Todos, excepto Odruarde eram desconhecidos para Asoke.

— Vejam só quem decidiu se juntar a festa — Odruarde falou — Achei que tivesse recusado meu convite.

Asoke ficou apenas ali, imobilizado.

Tudo que ele queria fazer, era pegar sua arma e atirar naquele homem, quantas vezes fossem possíveis. Não importava o que acontecesse depois, não importavam as consequências.

Os olhos das pessoas na mesa estavam voltados para ele, o encarando.

— Artistas — Luena interviu — ótimos na arte,  andrajos em todo o resto.

Os presentes riram e a tensão se esvaiu.

Asoke sentou-se o mais longe possivel do presidente — ao lado de um homem com porte de roedor e que possuía tantas medalhas que cobriam por completo o peitoral direito do uniforme — tentando ao maximo não encara-lo.

Estudou qual séria a forma mais rápida de chegar até ele — quando a segunda fase do plano iniciasse.

Duas horas depois do jantar ser servido. Enquanto as pessoas conversavam e uma banda qualquer tocava músicas que Asoke não se deu ao trabalho de prestar atenção.

Luena pediu licença, alguns minutos depois quando voltou a sentar as lâmpadas de todo o salão apagaram.

O coração de Asoke disparou no peito, ele retirou a arma, passou os dedos suavemente sobre a lateral dela e achou a trava de segurança.

Fez como Manuel o mostrara e destravou, ouviu um "click" estrondoso, mas concluiu que era apenas sua mente pregando peças. 

Os murmúrios das pessoas estavam se tornando cada vez mais altos.

Asoke ergueu-se surrateiramente.

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