III

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Kiiari sonhou com seu irmão.
Eles estavam sentados no capim, atrás de uma casa caindo aos pedaços.

— Eles vão cuidar bem de você, melhor que eu — ele disse.

— Não. Me deixa ir com você, eu posso ajudar. — refutou, esperançosa.

Seu irmão deitou de costas e encarou o céu azul limpido. Ela sabia que se ele viajasse, nunca mais se veriam. A própria mulher da praia o dissera.

— Isso está fora de questão. Eu vou e quando voltar, nós vamos viver juntos para sempre, ok?

— Promete? Prometa pelos deuses.

— Prometo — Ele disse.

Então o sonho mudou.

Kiiari estava em uma praia. O sol brotava no horizonte e cobria o céu com tons pálidos de vermelho e laranja.

A brisa fria e húmida rodopiava sobre seu corpo, fazendo-a sentir-se livre. Era um tipo de liberdade leve e pudorosa, igual quando se está sem vestes.

Mais em frente, um grupo de pessoas — não mais que doze — assistia enquanto uma senhora idosa colocava comida numa balsa.

Haviam alimentos de todos os tipos, bebidas que Kiiari desconhecia e varias velas acesas e que por algum motivo, não apagavam.

Os membros do grupo trajavam roupas feitas de pano branco.

Kiiari ouviu uma melodia numa língua que não conhecia, na verdade, algumas das palavras ela já ouvirá sua mãe cantar, mas era tão nova na altura que ela questionou como podia lembrar de uma coisa dessas, quando nem o rosto da mãe recordava.

Um dos homens presente empurrou a balsa até o mar e a jangada improvisada flutuou.

— A maioria de nós é único e ao mesmo tempo plural. Possuimos vários nomes, varios rostos e varias origens. Temos a mesma essência, o mesmo cerne, mas nosso poder é limitado pela região, pelo nome e pelo povo. Somos parte de uma só laranja que é dividida por toda a África.

— Uma voz familiar disse. Era meliflua e parecia também com o som de ondas embatendo em uma costa rochosa.

Kiiari não entendeu o que aquilo significa, mas concordou que não se referia a humanos.

— Sente falta de seu irmão não? — A voz questionou.

— Sinto — Kiiari disse.

Ela queria mentir, mas não se podia mentir em um sonho, todos sabiam disso.

A mulher entrou em seu campo de visão.

Sua tez era negra como ébano e brilhava como as estrelas. Seus olhos eram azuis e refletiam as ondas do mar, mesmo ela não estando a olhar para ele. Suas tranças negras e grossas ondulavam até seus ombros e seus passos eram como gotas de chuva caindo no mar.

— Um pequeno sacrifício para a vitória — disse.

— Vitória de quem? — Kiiari indagou. — nossa ou sua vitória? O que você quer realmente?

— Nossa vitória, tanto sua quanto minha.

A mulher caminhou até ao mar, que no mesmo instante, sussegou e parecia cimento.

Kiiari olhou para as pessoas á alguns metros, mas elas não pareciam notar a mulher de pé sobre as águas.

— Não tarda, o domínio dos homens cairá, e os deuses dessa terra voltarão a se erguer.

— O que isso quer dizer? — Kiiari questionou, exasperada.
A mulher não respondeu a isso.

— Eu estou cansada desses sonhos, Kianda. — Kiiari gritou.
O mar explodiu, água voou para todos os lados.

A frente de Kiiari estava uma criatura de olhos azuis, completamente azuis, com dentes aguçados como espadas e fendas no lugar do nariz. Seu cabelo era liquido e escamas cobriam seu corpo nú.

Ela beijou Kiiari. um beijo frio e árido que a fez perder suas forças.

Uma voz disse dentro de sua cabeça:

Logo logo você irá descançar minha guerreira. Até mesmo a natureza precisa de repouso.

E meu irmão? Kiiari pensou.

Seu irmão ainda é protegido. Não volte a dizer meu nome. Você sabe disso.

Kiiari acordou com um gosto de sal na boca e a frase "não volte a dizer meu nome" cravada em sua mente.

Ela tremia e todo seu corpo estava molhado.

Ela não pode te fazer mal, Kiiari disse para si mesma, não enquanto não se erguer, não directamente. Ela não sabia o que isso significava realmente, mas apaziguou seu desconforto.
Braços finos e quentes enrolaran-se sobre o tronco de Kiiari.

— Meu Deus, você sonhou com o diabo? — a voz familiar sussurou em seu ouvido.

Estava escuro, e as vezes eles levavam um solavanco por causa das estradas. Mas Kiiari sabia de quem era aquela voz e o corpo que a aquecia.

— Quase isso Gui, quase isso.

Antes de cair no sono, Kiiari implorou um último favor. Pediu de corpo e alma que Kianda salvasse a vida de Gui, não importava o custo. Ela o amava demais para vê-lo morrer.

Ele foi sua única companhia durante todos esses anos que o irmão fora embora. Gui merecia muito mais.

Kiiari sabia que essa era a segunda vez que pedia um favor a deusa, e que ela ia acabar por cobrar…  mais cedo ou mais tarde.

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