—Como foi seu dia? Como anda seu negócio? Ah, eu trouxe o livro, aqui! —Não contive minha animação, pensei que ela também fosse se sentir um pouco mais confortável se eu agisse com naturalidade.
Coloquei a sacola de papel sobre a mesa e a estiquei em sua direção. Seus olhos pousaram sobre ela com sutileza e eu simplesmente não estava conseguindo conter aquela euforia que parecia crescente, bem no meu peito. Por que estou tão feliz assim?
—Você não vai acreditar. —Diz depois de espiar a capa do livro. —Mas eu tenho esse livro lá em casa.
—Não se apresse, senhorita! —Eu levantei o dedo e tirei o livro de dentro da sacola. —Meu pai fez várias anotações do progresso dele dentro do livro, eu passei um dia todo traduzindo as anotações hindi. Pelo menos fica com o papel das traduções. —Mostrei o papel clipado na última página.
—Você traduziu tudo sozinho? —Ela ainda olhava para a folha frente e verso, coberta pela minha letra longa e irregular.
—Sim e não, eu tive ajuda do meu tio, porque a letra é um garrancho. E tem algumas expressões que eu não compreendo, mas a maior parte é mérito meu. —Sorri orgulhoso, nossos olhos se encontraram e por um instante eu desejei poder entender a dinâmica no rosto dela.
—Obrigada. —Voltou a olhar para o papel.
—De nada. —Passei a mão pelo cabelo, sentindo um pouco de calor, por isso aproveitei o amarrador no meu pulso e prendi tudo, não improvisando como fazia sempre, mas como havia mostrado pra tia Shanti. —O que você costuma beber quando vem aqui?
—É a minha primeira vez aqui.
—Então vamos desvendar isso juntos. Você gosta de tomar o quê?
—Hoje eu volto de carro, então só um refrigerante, de uva se tiver.
—Certo, me dá um minuto, vou lá pedir. —Eu vou até o balcão e escolho um guaraná, trazendo duas garrafas pequenas não muito tempo depois.
Maria estava distraída com o papel mais uma vez, eu coloquei a garrafa a sua frente e ela levantou a cabeça, sorrindo de leve e guardando o papel dentro do livro.
—Pode beber se quiser, eu não me importo. — Aponta para o meu guaraná.
—Eu não sou muito fã de cerveja e de qualquer forma eu ainda trabalho cedo amanhã. É melhor não beber também. —Dei um gole no refrigerante.
Ela sorriu para mim e eu sorri de volta, e não trocamos nenhuma palavra por alguns segundos.
—Ainda acha tudo estranho?
—Sim. —Ela concordou rápido. —Mas eu te expliquei isso, a estranha sou eu.
—Você não é estranha. —Balancei a cabeça. —Não é como se eu fosse excelente nisso também. Lembra da nossa primeira conversa? Acho que mostrei que posso ser bem deprimente ou aleatório às vezes desde lá. Mas será que se eu tivesse contado antes, isso também não seria estranho pra você? —Me repreendo internamente por falar tanto.
—Se você tivesse listado seus defeitos? Bom, sim, acho que sim. —Ela fez uma pausa. — Mas eu meio que fazia isso às vezes, quando queria me aproximar de alguém.
—Listar seus defeitos?
—É, eu fazia isso, mas não era necessariamente isso.
—Como era?
Ela toma um longo gole do seu refrigerante antes de começar a falar.
—Eu descrevia as coisas que se destacavam em mim. E não eram coisas necessariamente boas, é só que, você sabe. —Se inclinou em direção a mesa. —Não temos como guardar o básico sobre alguém, nosso reconhecimento vem de detalhes, e a aparência sempre muda, mas as manias não. O ponto é que eu parei com isso antes de entrar na faculdade, era um esforço que não servia de nada.
—Você entregava os seus detalhes? —Parei por um segundo. —Bem, é difícil imaginar essa Maria, mas pra eu entender a Maria de agora eu também preciso entender a Maria de antes. —Eu segui uma linha de pensamento. —Você não recebia os detalhes dos outros em troca dos seus? Quer dizer, era uma troca, não é?
—Não, não era. —Ela ri. —E esse foi o motivo que me fez parar.
—Deveria ser, mas eu acho que nem todo mundo, principalmente quando novo, está realmente pronto ou tem dimensão disso. Mesmo que não saibam nada sobre a nossa condição. —Eu queria que ela sorrisse, por isso em minha mente estava procurando mil e um assuntos que fossem úteis, mas eu também não era bom nisso.
—Você tem facilidade de falar para as outras pessoas?
—Eu tento ser equilibradamente sincero conforme o momento. —Dei de ombros. —Respondendo sua pergunta, acho que sim.
—Eu não sou muito equilibrada. —Tomou outro gole do refrigerante. —Mas eu normalmente tento ser.
—Tentar é o caminho. Você não precisa ter pressa nisso aliás. Já que nem todo mundo tem, ou compreende de alguma forma.
—Eu achava que qualquer esforço envolvendo pessoas, acabava não valendo a pena no final. —Espero quando ela parece estar pensando em algo. —E quando o bebê negócio começou de vez, eu tive um pouco de dificuldade porque eu precisava me interessar pelos meus clientes. Encaixar livros neles, sabe? Vai ficando mais fácil.
—Você encaixa livros nas pessoas? —Ponderei, não pareceu diferente do que eu fazia com as flores. —Como se o livro fosse algo que te ajudasse a lembrar delas?
—Ah, talvez? Na minha cabeça eu só recomendava um ou outro livro, entende? Usando o que eu conseguia perceber da pessoa, então talvez sim, acho que eu posso ver dessa forma também.
—Plumeria. —Eu soltei um tanto sem querer, por conta da surpresa, mas eu finalmente havia encontrado a flor perfeita para o rosto dela, pelo menos por enquanto. —Quer dizer, eu faço algo parecido. Mas com flores.
—Desculpa, o que?
—Eu uso as flores e...
—Não isso, o que você disse primeiro.
—Plumeria. Eu decidi qual flor encaixar no seu rosto. Uma plumeria.
—Plumeria? —Concordei com a cabeça. —Acho que não conheço essa flor.
—Ela não é conhecida por esse nome, é o nome da espécie. Mas aqui no Brasil é comum ver dela branca. Tem vários significados que variam conforme os tipos e cores, mas eu pensei que se encaixa em você por simbolizar a recriação e dedicação e mais uma série de coisas que... —Me interrompi, porque a balança estava me dizendo que eu estava sendo sincero demais e precisava voltar ao equilíbrio. —Enfim, na minha cabeça combina com você, aqui uma foto dela. —Pesquisei a imagem no celular e apontei para ela.
—É um jasmim. —Me olha por um momento. —Como se simboliza recriação?
—Bem, eu não sei explicar, mas acho que a maneira como os significados dela se tornam cada vez mais profundos, vai justamente se reinventando e por isso ligam a esse tipo de coisa. Como se estivesse renascendo.
—Isso me incomoda um pouco. Quando você começa a falar eu sinto que não me alfabetizaram direito.
—É só que eu tento sempre deixar tudo claro, e colocar meus sentimentos na mesa, porque eu acho justo e uma vez me interpretaram mal, então eu penso ser a melhor escolha sempre.
—E é. Mesmo sendo difícil, é a melhor opção.
Encarei minhas mãos, não estavam mais suando, mas eu senti como se estivesse quente por dentro, não como quando sentia calor, quente o suficiente para me sentir confortável. Soltei o ar que nem percebi ter prendido e bebi meu refrigerante, reparando nos detalhes do macacão dela.
—Você fica muito bem de vermelho, senhorita.
—Sério? —Ela ri por um tempo, como se tivesse sido pega de surpresa. —Minha mãe diz que vermelho é a minha cor, mas eu acho muito chamativo.
—Sua mãe tem razão, não é que é chamativo, encaixa bem, como... —Tentei pensar em alguma comparação decente. —Romeu e Julieta, ou bolo de cenoura com cobertura de chocolate.
—Vou lembrar disso na próxima vez que for comprar alguma roupa. Vou pensar em bolos e romances trágicos. Ou você estava falando de goiabada com queijo?
—Eu estava falando da goiabada com queijo, mas o romance apesar de trágico, tem uma euforia equivalente a você de vermelho, então eu acho que também serve. —Ri, tirando os fios do meu cabelo que escorreram para o meu rosto e tomando o resto do refrigerante, sem tirar meus olhos dela.
—Você parece saber exatamente o que dizer.
—Pareço? —Levantei uma sobrancelha e me ajeitei na cadeira, abaixando minhas mãos e sorrindo no final. —Que bom, então não estou te deixando entediada.
—Não, não está.
—Não preciso me preocupar com você bloqueando o meu número e depois sumindo?
—Definitivamente, não. — Ela ri.
Eu decido que gosto da risada dela e me esforço para memorizar o som.
—Isso realmente me deixa feliz. —Terminei meu refrigerante com um gole.Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...