Mamãe voltou a se aproximar lentamente, tentando ser sutil. Primeiro ela fez uma lancheira para mim na sexta-feira, com frutas, sanduíches e uma garrafa grande de energético, e somente a deixou em cima da mesa da cozinha, sem avisar ninguém a respeito disso. Depois, no sábado, eu a ouvi perguntando ao meu pai se eu iria trabalhar nos fins de semana também, parecendo curiosa apesar de estar me vendo atravessar a sala com meu cartaz e a bolsa cheia de comida, que ela novamente havia feito.
E no domingo de manhã, ela simplesmente entrou no meu quarto, sentou ao meu lado na cama e me perguntou sobre como eu estava indo.
—Acho que eu estou progredindo. —O notebook estava no meu colo e eu digitava as informações das três fichas que havia conseguido em três dias de trabalho, o que era uma boa média, se eu desconsiderasse que apenas duas dessas pessoas me pagaram algo pelo aluguel dos livros, e dentro desse número, uma delas pagou a metade do valor. —Podia ser melhor, mas não é tão ruim assim.
—Precisa de alguma coisa? —Olhei para baixo, encarando suas mãos já um pouco enrugadas
—Preciso que senhora não fique mais chateada comigo.
—Não fiquei chateada. —A olho e ela continua ao ver minha expressão. —Talvez um pouco, mas pelos motivos certos. Eu sou sua mãe.
—Eu sei disso.
—O mundo pode ser bem ruim.
—Eu sei disso também. —Ela suspira, olhando para um canto do meu quarto e depois voltando para mim.
—Precisa se cuidar lá fora. —Deu duas batidinhas na minha perna. —E passar protetor solar. E não andar com celular no ouvido, nem escutando música.
—Tudo bem.
—Onde você tá estacionando o carro? Procura parar sempre perto dos guardinhas.
—Vou lembrar disso. —Suspirou de novo, se levantando —Precisa de alguma ajuda na cozinha? —Ela abanou o ar para mim, se afastando sem falar qualquer outra coisa.
Minha mãe foi criada em uma família em que não era muito comum demonstrar sentimentos ou ter conversas sobres eles. Normalmente, quando ficava um certo período sem falar com alguém, ela só se aproximava como se nada tivesse realmente acontecido, não pedindo desculpas pelo tempo que passou afastada e também não esperando isso da pessoa.
A questão era que se ela se aproximou por conta própria e iniciou um “diálogo de reconciliação”, eu seria realmente grata por isso, por estarmos bem e por ela ter sido a primeira a ceder. Porque eu não estava caminhando para um pedido de desculpas, nem pensando em desistir de tudo por conta da distância que ela havia colocado.
E isso me dizia algo sobre mim mesma que antes eu não havia percebido, talvez por nunca ter tentado começar algo do nada, no completo escuro.
Ainda não eram 11 horas quando eu abri uma página de planilhas e coloquei os livros que estavam emprestados. Contando com o Lucas, eu tinha quatro clientes, que eram a sra Cintia; a senhora que levou Fica Comigo. Jonas; um adolescente que pareceu animado com a minha ideia e pegou o livro Vinte Mil Léguas Submarinas, do Júlio Verme. E por último, o meu cliente de sábado, o José, um senhor que discutiu comigo sobre o preço da versão de bolso ser o mesmo que o da versão normal. Mesmo argumentando que o conteúdo era o mesmo, o homem bateu e pé e só foi embora quando eu dei um desconto significativo. Lidar com pessoas era um pouco complicado, mas eu via isso como parte do percurso para alcançar minha meta. Que ainda não estava tão bem definida, mas envolvia não fracassar de forma fenomenal e me arrepender por ter simplesmente tentado.
Faço uma pausa quando meu celular apita em algum lugar da cama, eu o puxo para encontrar uma mensagem de Ravi, a lendo uma vez e depois outra, até rir e esperar que ele dissesse que era uma brincadeira.
“Você não está vindo para o Rio, certo?”
Espero um pouco, mas a mensagem não chega a ser recebida por ele. Testo algumas mensagens, até desistir de pensar muito e enviar uma sequência delas.
“Se isso é algum tipo de brincadeira, é agora que você diz que é uma brincadeira.”
“Ravi?”
“Você não está vindo mesmo, não me avisando em cima da hora!”
“Ok, se isso for mentira ou se for verdade, tanto faz. As duas opções me fazem querer gritar com você!”
Foi difícil não checar o celular a cada dois segundos, recarregando a página do chat até que ele finalmente respondesse, horas depois, com uma foto de si mesmo.
Soube pela primeira vez que seus cabelos eram longos e escuros, desnecessariamente hidratados caindo sob a sua pele parda do rosto. Não havia mais o que dizer sobre ele, mas a informação central ficou na minha cabeça pelo resto do dia, não saindo mesmo quando deixei o celular em cima da minha cômoda. Ravi estava no Rio.Escrita: LuaInAHoodie e Marveril
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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...