Maria

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Quando eu voltei para casa papai ainda estava pintando a sala. Eu passei por ele, que me cumprimentou rapidamente antes de continuar cantarolando a música que tocava no rádio, parecendo satisfeito enquanto o rolo molhado com um tom já conhecido, escorregava no que parecia ser a última parede. Ele parecia feliz por ter escutado minha mãe e minha mãe também parecia feliz por isso, porque a casa estava com o cheiro dos temperos que a carne de panela com batatas, que era a comida predileta do papai, levava.
Eu só me esgueirei silenciosamente até o meu quarto, com medo de estragar a paz que normalmente durava um dia ou dois.
Cacau ainda estava em cima da minha cama, e até poderia arriscar que ela não tinha se mexido desde que eu saí de casa, mas havia um livro em baixo dela, a capa dura da peça servindo como afiador para as suas garras. Eu consegui ser calma o suficiente para tirar a gata com delicadeza, e só depois começar a lamuriar por causa do livro.
Era um exemplar de Dom Quixote, com a capa dura em um tom de verde musgo, eu havia achado o livro em um sebo e antes de Cacau entrar em cena, ele estava em perfeito estado. Alisei a capa, me sentando na cama para olhá-lo por dentro, constatando com a páginas ainda estavam inteiras, com o mesmo amarelado de antes.
Cacau esfregou levemente os pelos na minha perna como se estivesse pedindo desculpas, e eu me abaixei para acariciá-la, dando uma olhada nos meus outros livros, a maioria organizada em pilhas encostadas na parede, porque minhas duas estantes ficaram cheias rápido demais.
Eu disse a verdade, eu amava livros.
Eles foram meus melhores amigos por muito tempo e serviram de escudo toda a vez que eu precisava de uma desculpa para não olhar diretamente para alguém. Através deles eu adquiri gostos e formei opiniões, aprendi lições valiosas sobre o que fazer e o que não fazer.
E toda vez que mamãe tocava no assunto de doá-los para algum lugar, eu discutia com ela, mesmo sabendo que seus argumentos, que envolviam o fato de eu não ler mais com a mesma frequência de antes e não terminar os livros que começo, faziam sentido. Mas você não doa amigos, foi o que eu disse da última vez que falamos sobre o assunto. E ter um livro arranhado em minhas mãos me fez pensar que amigos também não devem ser negligenciados.
Ouvi uma movimentação do lado de fora e sabia que a qualquer momento mamãe iria me chamar para comer, então deixei Dom Quixote de lado e fui para o banho, voltando para o quarto e sentindo falta do meu celular. Eu o acho na minha única bolsa de passeio, desbloqueando a tela e abrindo a única notificação. Eram duas mensagens de Ravi.
“Bom dia, como você está?”
“Oi?”
Precisei me sentar na beirada da cama, buscando nossa conversa mais recente. Eu lembrava de quase tudo que havíamos falado, mas nada fazia muito sentido, inclusive o fato de eu ter ligado para ele. E era difícil não pensar que talvez ele tenha se sentido responsável de alguma forma, como os padrinhos dos alcoólicos anônimos, que ligavam e perguntavam se estava tudo bem, se mostrando presentes para aparar uma possível recaída.
—Maria? —Olhei para a porta e encontrei minha mãe parada no meio dos umbrais dela, sua postura dando a entender que estava ali a algum tempo. —Dormiu sentada? —Ela brincou e eu fingi rir, levantando da cama e a seguindo até a cozinha, onde papai nos esperava para comer.
Fiquei quieta ouvindo a conversa deles, os dois tinham algum tempo livre por serem ambos aposentados.
Os assuntos normalmente envolviam vizinhos, reportagens ou a nossa família que morava em Recife. Então eu desligava nessas ocasiões, usando minha boca apenas para mastigar, até o momento que eles me chamassem para conversar sobre algo que incluísse a mim também. Nesse dia, o gancho foi feito por meu pai.
—Maria, que cor você quer que eu pinte o seu quarto? —Ele perguntou antes de colocar um pedaço de carne na boca.
—O que for melhor para o senhor.
—Salmão também?
—O quarto dela é azul, Adilson.
—É verdade? —Concordei com a cabeça.
—Então vamos pintar de azul. Quando eu posso fazer isso?
—Ela precisa arrumar tudo primeiro. —Concordei com a cabeça novamente.
—E quando você pode fazer isso? —No exato momento que ele fez a pergunta, eu coloquei um pedaço de carne na boca, o que fez com que eles permaneçam mudos esperando minha resposta enquanto eu mastigava e depois tomava um copo de água.
—Depende do senhor, vai pintar quando?
—Quando você arrumar, minha filha. —Tomei mais um pouco de água, eu só acabaria de comer e sairia dali quando as datas e tramites fossem devidamente acertados.
—Eu vou arrumar amanhã.
—Vai precisar de um lugar para colocar seus livros.
—Posso colocar em caixas.
—Mas vão ficar espalhadas pela casa? —Olhei em volta, encontrando as milhares de caixas contendo os enfeites que estavam na sala. Todas colocadas ali pela minha mãe, porque no corredor e no quarto não havia mais espaço.
—Ela pode colocar na mala da brasília.
—No meio da rua?
—Eu disse na brasília, não no meio da rua. —Coloquei outro pedaço de carne na boca.
—Você já entrou no quarto da sua filha? Os livros não vão caber naquele carro minúsculo.
—Cleide, ela pode muito bem organizar de um jeito que caiba.
—Ela não é mágica, Adilson!
Me retirei da mesa e limpei meu prato, a discussão deles serviu como música de fundo enquanto eu fui para o banheiro escovar os dentes, e continuou mesmo quando eu voltei depois para acenar um “boa noite”.
Ainda não era tarde o suficiente para que eu fosse dormir, então só me estiquei na cama, pegando meu celular para jogar Candy Crush e ouvir música, estando na metade da playlist quando o bip de notificação soou no meu fone. Abaixei a barra do celular e olhei a mensagem, era Ravi novamente.
“Só me diga se está bem. Eu me importo, Maria.”
Larguei o aparelho em cima da minha barriga e olhei para o meu teto. Era azul, como mamãe havia lembrado muito bem, e tinha adesivos de estrelas e luas que brilhavam no escuro. Eu teria que pedir que papai tivesse cuidado com eles quando fosse pintar o quarto, realmente precisava lembrar disso.
Peguei novamente o celular, relendo a mensagem, não porque tinha esquecido as palavras, mas porque precisava de alguma confirmação. Seria tão ruim assim? Eu poderia usar esse pequeno começo, com Ravi, como um exemplo para todas as vezes que alguém me dissesse para tentar ser uma pessoa mais aberta. Bom ou ruim, ambos os finais me dariam propriedade para rebater.
“Eu estou bem, acordei com uma ressaca horrível e minha gata destruiu um livro meu. Grande dia.”
É o que eu acabo respondendo, só restava torcer para que as surpresas fossem boas.

Mamãe me acordou às 5h a.m, oferecendo ajuda para limpar meu quarto. Precisei fingir que não havia dormido menos de três horas na noite anterior e vesti minhas roupas de faxina, um short jeans e uma camisa das eleições de 2004. Nós primeiro carregamos pilhas soltas até o carro do papai, que ficava estacionado em frente a nossa casa embaixo de um pequeno toldo, mas ele ficou cheio rápido demais, então começamos a usar caixas, as colocando ao lado do veículo.
Às 11h estendemos os panos em cima dos moveis que ficaram e papai voltou da rua com a lata de tinta, nos liberando do serviço. Depois disso o meu único trabalho foi sair e me sentar na calçada ao lado das caixas, guardando minhas relíquias de possíveis infratores.
E olhar a vizinhança, as casas pequenas com muros baixos e telas de proteção, foi o suficiente por um tempo, até não ser mais. Desejei que Ravi respondesse minha mensagem para que pudéssemos conversar, mas ele não estava online no chat, e as vidas do meu Candy Crush precisavam ser recarregadas.
Isso me levou a esticar o braço e tirar de dentro de uma caixa, separada exclusivamente para esse gênero textual, um gibi da turma da Mônica. Não me atentei a cronologia, apenas o abri e comecei a ler, rindo como se estivesse vendo as gravuras e os diálogos pela primeira vez, como se não tivesse conhecido aquelas histórias com sete, oito anos de idade.
Estava tão entretida nisso que só percebo a aproximação de um garoto quando seu queixo estava quase que totalmente apoiado no meu ombro. Eu me assustei com a súbita invasão, pulando para um lado enquanto ele pulou para o outro.
Ele me avaliou por alguns segundos e eu fiz o mesmo, só podendo me concentrar no seu cabelo crespo e na pele negra do mesmo tom que a minha.
—Você gosta de turma da Mônica? —Ele perguntou com a voz infantil e eu chutei que ele talvez tivesse onze anos de idade. —Você também vê o desenho?
—Não, eu só leio o gibi.
Olhei para as folhas na minha mão.
—Você quer ler um? —Perguntei para a criança desconhecida que talvez eu conhecesse, e ela acenou meio incerta, esticando a mão para o livro que estava na minha posse. —Tem naquela caixa, pode pegar um.
Apontei e ele demorou para obedecer, arrastando os chinelos até a caixa e se curvando, pegando com cuidado os gibis e parecendo escolher com base nos desenhos da capa. Por fim ele pegou um, uma edição especial com um dégradé nos primeiros desenhos, se sentando ao meu lado antes de começar a ler.
Ficamos em um silencio confortável por quase vinte minutos, ele pegou outro gibi, assim como eu também peguei. E antes que eu pudesse terminar o meu, ele se levantou e esticou o dele para mim, a segunda história marcada pelos dedos finos na metade.
—Não vai terminar?
—Eu preciso ir, minha mãe tinha pedido pra comprar pão. —Ele franziu o nariz e eu ri, imaginando que a mãe do garoto não deveria estar muito feliz com a demora.
—Onde você mora?
—Ali, na vilinha. —Ele apontou para um portão amarelo no final da minha rua.
—E qual é o seu nome? Eu sou a Maria, moro aqui. —Completei quando percebi que ele estava em dúvida se responde ou não.
—Meu nome é Lucas.
—Você é cuidadoso, Lucas?
—Como assim?
—Quer que eu te empreste o gibi? —Ele concordou com a cabeça. —Então é só me trazer ele inteiro, se fizer isso eu te empresto os outros.
—Eu vou cuidar direito. —Garante, e com isso fechamos nosso acordo.

Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril

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