Maria

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—Acho que você não está tentando o suficiente.
De onde eu estava, em uma poltrona vermelha de couro falso coberta por um pano cinza felpudo, comecei a reconsiderar os motivos que me levavam a voltar sempre para a mesma psicóloga.
Havia algo na familiaridade, claro.
Ela usava sempre os mesmos brincos e o mesmo óculos, assim como o seu cabelo estava sempre tingido no mesmo tom de loiro. Eu conseguia reconhecê-la, e isso era extremamente importante considerando a minha inexistente vontade de contar para ela sobre a minha condição médica.
Mas sempre existiam esses momentos, em que ela me fazia duvidar se realmente deveria estar ali sendo uma psicóloga graduada.
—Dra. Mendes, acha que o problema sou eu?
Ela ajeitou os óculos e olhou para o bloquinho que estava a sua frente, em cima da pequena mesa de madeira, que fazia conjunto com a cadeira que ela estava sentada. Sua figura esguia olhando em volta por alguns segundos, como se estivesse escolhendo as palavras. Literalmente. Seu escritório era cheio de quadros com mensagens motivacionais e cartazes de pessoas correndo em direção a linha de chegada ou sorrindo. Dependendo do dia, as frases me faziam franzir o nariz ou revirar os olhos.
—Nesse caso, tudo depende de você, então sim, parte do problema está em você.
—E qual seria essa parte do problema?
—Maria, isso você precisa descobrir.
—E a senhora não pode me ajudar nisso? —Soltou um suspiro e eu entendi que aquele era o seu “não”. —Mas a senhora sabe qual é o meu problema?
Meu tom de desafio foi velado, mas ainda assim ela percebeu.
—As pessoas, todos nós, temos problemas. E quando nos apegamos demais a eles, independentemente do que eles significam, nossa vida passa a ser regida por essas dificuldades. Entende?
—Então. —Tentei começar novamente. —No meu caso, qual é o problema?
Nos encaramos. Parecia fácil demais para ela, mas eu cruzava a cidade toda semana e contava sobre minhas dificuldades só para no final ouvir que eu tinha que achar respostas e soluções sozinha.
—Porque você não me diz? —Levantou as sobrancelhas, me desafiando a responder, coisa que eu não fiz.
—E se eu te dissesse? Qual é o próximo passo depois disso?
—Depende do problema. —Afundei um pouco mais na cadeira. —Você pode achar a raiz de tudo, arrancar fora, se mudar é algo que você realmente quer, então precisa começar de algum lugar.
—Como se escolhe por onde começar?
—Pode começar pelo mais difícil ou pelo mais fácil. A escolha precisa vir de você.
Quis dizer para a dra. Mendes que se eu fosse tão proativa em relação as coisas que me incomodavam, eu não me despediria dela, saindo frustrada do consultório, só para voltar no mesmo dia e horário, uma semana sim e outra não. O consultório ficava no centro do Rio e eu tinha consultas às quartas, cinco horas da tarde. Quando eu saía, uma hora depois, as ruas estavam movimentadas por conta do horário de liberação das empresas, a calçada entupida de gente que andava de um lado para outro. Alguns sozinhos, outros em bando ou em duplas, eu ouvia suas vozes, sentia os cheiros — suor, perfume e cigarros. Eu os olhava atentamente na medida que ia para o ponto de ônibus.
Uma mulher de vestido rosa.
Dois adolescentes com um uniforme branco, um deles tinha cabelo azul com mechas verdes.
Um senhor com uma muleta.
Um homem negro careca de terno, que usava uma gravata muito parecida com a que eu dei para o meu pai no natal passado. Me aproximei dele, pensando que era pouco provável que ele fosse o meu pai, tentando algo como uma expressão simpática para a remota possibilidade de ser. Mas o homem acabou passando direto por mim.

—Você parece um pouco mais triste quando volta da psicóloga. —Foi a primeira coisa que a minha mãe perguntou quando eu abri a porta de casa.
—Se ela me deixar muito feliz eu não volto.
—Porque você está triste?
—Não estou triste.
—Acho que não está dando certo, porque você não é sincera com ela.
Às vezes mamãe era desnecessariamente atenta.
Continuei meu ritual para quando chego em casa, que se resumia em cumprimentar minha gata gorda, velha e marrom, Cacau, que desde que chegou em minha casa, há quase dez anos, escolheu o banquinho do lado da porta em frente a janela para passar seus dias, só saindo dali para fazer suas necessidades básicas. Depois eu retirava meus sapatos e prendia meus cachos com a chuquinha preta que ficava no meu braço, tirando o resto das minhas roupas enquanto atravessava a sala, minha mãe me seguiu com o olhar, sentada uma das duas poltronas amarelas que faziam par com o sofá de três lugares.
—Papai está em casa?
—Eu não posso saber onde ele vai o tempo todo
—Qual foi o motivo da briga? —Perguntei apenas por tato social, lutando para tirar meu sutiã.
—Nem vale a pena explicar.
         Quase sempre não valia, mas fico muda enquanto ela toma fôlego.
—Ele quer pintar a casa de branco, mas eu disse que isso ia dar muito trabalho, certo? —Não concordo com a cabeça, mas ela continua como se eu tivesse. —As paredes são salmão. —Faz um gesto amplo que eu não acompanho. —Ele vai precisar de dias para cobrir tudo de branco.
Minha casa tinha quadros e retratos por todas as superfícies horizontais e verticais. Sem olhar pelas brechas que ficam entre um objeto e outro, eu não poderia saber a cor das paredes — talvez papai devesse pintar somente essas brechas. Assim como eu também não saberia que cor ou formato os moveis tem por debaixo das milhares de capas e bugigangas que meus pais colocavam sobre eles. Mas eu nunca reclamava, porque decoração era o único tópico seguro entre os dois.
—Ele vai fazer isso sozinho?
—É lógico que vai!
—Então não tem problema. —Ela me encarou. —Não precisa brigar por isso.
—Você viveu dentro de mim, sabia?
—Mãe, não vale a pena discutir com ele. E não vale a pena discutir com a senhora.
—O seu pai devia saber disso também. —Dessa vez eu concordei com a cabeça, recolhendo minhas roupas e indo para o meu quarto.
Talvez fosse por toda poluição visual do lado de fora que meus moveis e lençóis possuíssem cores neutras e claras, e poucos produtos de beleza estivessem espalhados pela minha escrivaninha. Mas meus livros, os exemplares que juntei durante toda a minha vida, eles tomavam todo o espaço que sobrava depois disso.
Eu nunca tive um gênero textual favorito, nem preferências sobre capas ou quantidade de palavras. O que me importava sempre eram os personagens. Bem mais que o próprio enredo.
Em um livro as características físicas sempre ficam em segundo plano. Os autores podem falar sobre como os olhos azuis brilhavam ou sobre como a simetria do rosto era perfeita, mas nada disso realmente importa, porque quando você lê um livro, se torna mais fácil ver as intenções, gostos e singularidades dos personagens que fazem parte da trama, sem que um rosto muito bonito, ou nem tanto, atrapalhe o seu julgamento.
Às vezes eu imaginava meus personagens favoritos e os descrevia a partir do que era realmente importante. Capitu era esperta e fascinante, Darcy era soberbo e humano, Jane Eyre era realista ao mesmo tempo que se mantinha esperançosa.
Eu os catalogava e repetia seus desfeitos e virtudes. Eu os defendia também, porque sentia que os conhecia bem demais, e talvez isso fosse verdade. Poderia falar por horas sobre os livros que li, mas não levaria trinta segundos para falar sobre qualquer outra coisa. Inclusive de mim mesma.
Dra. Mendes dizia que eu era muito apegada a informações inúteis, que se tornavam úteis na medida que eu continuava dependente delas. Acho que ela disse isso porque nossa primeira conversa foi toda sobre meus rituais e costumes, coisas que eu gosto de fazer antes, durante ou depois de algo. E eu entendia o porquê de ela ter se incomodado com meu monologo, parágrafos grandes falando sobre características especificas de alguém só fazem sentido nos livros.
Quando eu costumava falar sobre tudo o que é incomum sobre mim para possíveis amigos, mostrando minhas estranhezas e singularidades. Tentando fazer com que eles fizessem o mesmo. Porque eu guardaria suas manias, mas não conseguiria guardar seus rostos.  Mas quase ninguém quer ser reconhecido pelo o que tem de mais estranho, por isso minha estratégia só serviu para me expor.
Meu celular vibra, soterrado no bolo de roupa que estava nos meus braços. Jogo as peças em cima da cama e olho a notificação. Era o Ravi.
“São Paulo está gelada, mas como está o seu dia?”
“Está tentando me fazer inveja?” O clima no Rio raramente era frio, podia lembrar das poucas vezes que havia realmente necessidade de colocar um casaco pesado.
“Longe de mim, só comentando. Minha garganta está ruim, então não pense que eu estou comemorando também.”
“Eu suei como um porco o dia todo. Então sua dor de garganta não me comove.” Jogo o celular em cima da cama só para pegar um pijama e a tolha, e então resgatá-lo novamente.
“Você é cruel. Mas eu ouvi no jornal que a frente fria vai passar pelo Rio, então aguente firme.”
“Eu estou aguentando. Aguente firme também.”
Eu paro ao lado do boxe, o chuveiro já aberto, meus dedos subindo e descendo pela tela do celular, brincando com nossas poucas mensagens antigas até que ele responda.
“Ainda falta um pouco para eu estar em casa, mas hoje estou acompanhado de um amigo tagarela, então não é o fim do mundo.”
Sorrio com isso, mas não sei o que responder para ele. Era bom que Ravi tivesse amigos e mesmo assim se preocupasse em começar conversas comigo no chat. Mamãe havia insistido tanto para que fizesse o cadastro, ficando ao meu lado enquanto eu colocava minhas informações e concluía o login, que eu sentia que pelo menos às vezes devia entrar e olhar algumas atualizações, mesmo sem participar das conversas.  Espero que ele fale mais alguma outra coisa e quando isso não acontece, só entro debaixo da água e tomo meu banho.

Escrito por:Marveril e LuaInAHoodie
Capa e arte por:shyminb e LizGael

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