Antes de optar pela medicina veterinária, eu acreditava que poderia ser um artista, como a minha mãe. E o que me fez desistir disso não foi a minha condição especificamente, eu apenas fui deixando de querer fazer e me tornando um observador. Sem contar que eu podia reconhecer os animais, então me pareceu mais vantajoso ajudar animaizinhos do que brincar com tinta e argila o tempo todo, desenhando formas abstratas, porque eu não era capaz de reconhecer o rosto do meu próprio pai.
Mas eu nunca deixei de gostar, papa dizia que estava no meu sangue esse amor pela arte e mesmo odiando o caos paulista, eu me permiti enfrentar todo aquele trânsito em um ônibus lotado e uma fila consideravelmente grande apenas para apreciar aquela exposição sobre a arte do Van Gogh. Era o último final de semana que a exposição estaria em São Paulo, era a minha última folga do mês, tudo caminhou para dar certo, não havia porque não ir.
Cheguei dentro do horário, o lugar todo refletia a arte dele, eu me senti dentro de um quadro. Estava fascinado com a beleza e os detalhes do local, me perguntei como toda aquela estrutura era possível diversas vezes enquanto aproveitava a experiência colorida dentro do shopping. Tirei fotos, fiz algumas anotações, me senti em um paraíso particular onde não importava se eu podia reconhecer o rosto de um dos meus artistas favoritos ou não, porque eu reconhecia a alma que ele havia deixado em todas as cartas e obras expostas ali.
Por uma hora e meia, eu pude me desligar de mim mesmo e apenas curtir o momento. Poderia classificar esse como um dos melhores dias em anos, mas enquanto eu seguia para a praça de alimentação no outro andar do shopping, acabei esbarrando em alguém que tornou a noite um pouco mais complicada do que eu pensei que poderia a àquela altura.
O casal me parou e cumprimentou com um sorriso, eu tentei buscar na memória os tons das vozes deles, mas nada me veio em mente, então eu apenas sorri de volta, desconfortável. Num primeiro instante, eu queria apenas que aquilo não tivesse acontecido, fugir, mas então a moça mencionou o meu pai.
—E como vai o senhor Manu? Eu fiquei sabendo da condição dele, ele está bem? —Ela parecia realmente preocupada, mas eu sequer sabia seu nome.
—Cara, você sabe, minha avó também teve Alzheimer, foram anos difíceis, tem que ter muita paciência. —Ele me disse e eu concordei, guiei a conversa com um aperto no peito.
A moça era loira, não aquele loiro tingido, mas o que parecia natural e eu não conhecia muitas loiras naturais, fiz rapidamente uma lista em minha mente. O homem era alto e tinha uma tatuagem perto do pescoço, escapando pela gola da blusa, eu tive um amigo na faculdade com uma tatuagem parecida. Bernardo, do curso de Biomedicina, eu tinha algumas aulas com ele no segundo e terceiro semestre. Não me lembrava dele ter namorada, mas eles pareciam um casal.
—Sim, já faz mais ou menos dois anos, eu estou pegando o jeito. Quer dizer, é mais difícil pra ele com certeza. —Eu cocei a cabeça, sentindo meu rosto queimar por um instante.
—Sim e o seu pai sempre foi tão vivo, aquela vez que fomos no restaurante ele foi tão legal, quando a Rafaela me disse eu fiquei com o coração na mão. —Rafaela, a namorada do Gabriel só tinha três amigas próximas e apenas uma delas era loira.
—Não se preocupe, estou cuidando bem dele, Teresa. —Eu sorri quando ela balançou a cabeça. —Meu tio Indra também se mudou pra cá pra ajudar.
—Ah, aquele homem alto e carrancudo no restaurante é seu tio? Nós comemos lá semana passada e ele parecia tão fechado, mas quando abriu a boca parecia até uma cópia do seu pai, mas com sotaque. —Bernardo contou e eu sorri.
Seguimos conversando por um tempo até que precisamos nos separar. Eu respirei fundo quando percebi que estava sozinho, ponderei um pouco e resolvi ir pra casa ao invés de comer, meu estômago estava embrulhado. Situações assim não eram atípicas, mas sempre me deixavam nervoso, porque por mais que fosse algo comum pra mim, não era para eles. Normalmente eu não me importaria tanto, mas eles de certa forma estavam próximos de mim e eu não pude os reconhecer, isso me afetava, mesmo que eu soubesse que ia acontecer o tempo todo.
Cheguei em casa e fui direto para o jardim no quintal, sem nem mesmo entrar. Reguei as flores e me sentei no caminho de pedras, finalmente me permitindo reproduzir a cena no shopping para gravar suas vozes e encaixar uma flor em seus rostos. Quando os encontrar de novo, eu não vou esquecer. Para esse tipo de coisa minha memória é bem melhor, o problema está apenas em uma pequena parte do meu cérebro que não recebeu oxigênio suficiente depois do acidente que sofri ainda novo. Essa parte morreu então eu fortaleci as outras e agora está tudo bem.
Repeti até sentir aquela sensação ir embora e limpar minha mente o bastante para ouvir apenas o mundo acontecendo ao redor. A chuva estava chegando para a madrugada então o céu estava turbulento e o vento um pouco animado demais, estava difícil manter meu cabelo no lugar e continuar sem me irritar com isso, por isso entrei.
Tio Indra e papa estavam jogando Pachisi na cozinha, pareciam concentrados demais, sempre foram competitivos, principalmente um com o outro, então apenas fiz meu prato, aproveitando que a comida ainda estava quente e me sentei, os observando.
Tio Indra tinha uma violeta, porque ele era um homem leal, leal a seus ideais e a família acima de tudo, quando estava procurando uma flor especial para ele, esta pareceu a certa, porque apesar de ser muito parecido com papa, e do papa ser leal também, essa era a tênue linha que diferenciava os dois. Algumas vezes, tio Indra também poderia se encaixar em uma flor-de-lis, e papa com uma violeta, mas essa era a verdadeira essência deles e a beleza nesse jogo das flores.
—Como foi lá, Ravi? —Tio Indra perguntou em meio a uma jogada.
—Muito bonito. Mas, você não iria gostar, tio. —Eu ri da expressão que ele fez. —Era imersivo demais, sem contar as pessoas por toda a parte.
—Tem razão. Eu não iria gostar do tumulto. Manu é melhor você se preparar para perder. —Tio Indra deu aquela risada de chaleira.
—Sua mãe se inspirava bastante com a técnica do Van Gogh. —Papa disse, finalmente olhando pra mim.
Papa gostava de camisas lisas, sem botões e cores fortes, estava sempre usando uma, com mangas cumpridas mesmo no calor. E também boinas em tons pastéis e sandálias. Com uma certa idade eu entendi que ele mantinha sempre um mesmo estilo para me ajudar a identificá-lo quando saíamos na rua, por exemplo. Ele queria sempre se destacar para mim, a essa altura eu o reconheceria por qualquer outra coisa além da roupa, ou a flor-de-lis que imagino em seu rosto, os detalhes dele tem um cheiro e uma textura que é só dele, que eu aprendi a decifrar com o tempo, mas quando eu tinha sete, dez anos e ele precisava me criar sozinho, eu tinha dificuldade em me situar, em diferenciar os garçons, os clientes fiéis dos novos no restaurante, até mesmo meu tio Indra durante anos foi um desconhecido para mim num primeiro contato. Então eu entendo as manias que todos a minha volta mantém, principalmente o papa.
—Aquela paisagem que ela pintou na casa de Délhi lembra as pinceladas de “A Noite Estrelada”. —Eu me lembrei do quadro que tínhamos na entrada do restaurante.
—Sua mãe amou Délhi, mas a casa parecia sufocar a inspiração dela, acho que foi difícil para ela. —Papa disse convicto, isso me fez sorrir, porque ele estava completo naquela noite.
—Com você sugando a energia dela também não deveria ser fácil, mamadi ficava o tempo todo massageando os pés de Lilian, porque você estava pesado demais. —Tio Indra riu, fazendo outra jogada.
Papa e tio Indra embarcaram em uma conversa nostálgica e eu fiquei pintando minha mãe em minha mente, me lembrei de seu cheiro floral, da sua voz grave e ao mesmo tempo suave, da maneira como acariciava meus cabelos. Ela tinha a pele bem clara e era alta, mais até do que o papa, seus cabelos castanhos faziam cachos apenas nas pontas e segundo papa, ela nasceu para usar azul. Não vimos a hora passar, tio Indra passou a noite com papa no quarto principal e eu pude retornar para o meu antigo quarto. Tudo estava no mesmo lugar, eu usava o quarto no dia-a-dia, menos para dormir, mas foi reconfortante voltar naquela noite.
Tomei um banho demorado, tirando a tensão nos meus ombros e lavei o cabelo também, o que me levou muito tempo para secar, mas eu pude conversar um pouco com Gabriel nesse meio tempo, digitando mensagens com apenas uma mão eu acabei gerando muitas palavras erradas e engraçadas. Gabriel estava voltando para São Paulo na próxima semana, parecia ansioso, mesmo não perdendo uma oportunidade de entrar com alguma história sobre as praias, o Cristo Redentor ou qualquer outra coisa fantástica que ele tenha feito no Rio.
Isso me fez lembrar de Maria, terminei de secar o cabelo, fui para o quarto e entrei no aplicativo do site, que era bem mais simples, mas funcionava bem para a troca de mensagens. Escrevi um “boa noite” e apaguei depois de perceber a hora. Me perguntei se ela estaria acordada, se não me acharia um chato por chamar tão tarde. Me perguntei se ela era o tipo de pessoa que demorava a dormir, ou daquelas que pegam no sono assim que deitam. Isso gerou mais perguntas, então eu comecei a anotar.
Fiz uma lista, com perguntas bobas e talvez pessoais demais, o que me intrigou quando percebi toda a situação, quer dizer, por que eu precisava dessas respostas? Por que não saber essas respostas apenas me deixa mais curioso? Pensei.
“Você prefere o arroz por cima ou por baixo?” Enviei, sem me preocupar se a resposta viria logo ou não, me deitei e coloquei uma música.
“ ‘Por cima ou por baixo’ de que?”
“Na hora de comer, você coloca o arroz por cima ou por baixo do feijão?” Ela respondeu rápido.
“Não como feijão.”
“Ah, eu não esperava por essa resposta. Mas pelo menos você não coloca o arroz por baixo. O que há de errado com o feijão?”
“Eu não gosto dos caroços. Por um tempo a minha mãe coou e eu tomei só o caldo, mas ela cansou disso rápido demais. Então eu só parei de comer.”
“Espero que esteja substituindo as vitaminas pelo menos. Feijão não é muito legal sozinho de qualquer forma. Você fala bolacha ou biscoito?”
“Eu falo da forma correta: biscoito.”
“Imaginei que fosse dizer isso. Papa chama de pataakha, então eu não ligo se é realmente bolacha ou biscoito.”
“Porque entrou numa discussão que não te interessa? Ravi você precisa escolher melhor suas lutas, de verdade. Eu estava preparada para atacar.”
“Porque todo mundo que eu conheço tem uma opinião sobre isso e eu queria saber a sua. É divertido assistir a uma discussão sobre, porque no final é tudo comida, mas se você quiser eu posso defender o paulistano em mim e dizer que é bolacha.”
“Não quero. Pataakha parece soar melhor, se pronuncia como se lê? É como um ‘Pata a cá?’ ”
“Exatamente. Pata a cá, precisa ouvir o chefe do restaurante gritando isso pela cozinha. É hilário!”
“Você trabalha em um restaurante?”
“Na verdade, em um zoológico. O meu pai tem um restaurante, então eu cresci lá.”
“Sério que você trabalha em um zoológico? É literalmente a última coisa que se chuta quando alguém pede pra você adivinhar no que se trabalha.”
“Eu sei. Mas é verdade, eu sou veterinário, cuido especificamente dos animais mais leves, porque ainda estou começando. Acabei de me formar.”
“Eu me formei faz um tempo, então talvez você esteja falando com uma mulher mais velha.”
“Devo adicionar um senhorita antes do seu nome? Vou me dirigir com mais respeito agora. Senhorita Maria, não acredito que seja mais velha do que eu, apesar de ter apenas vinte e quatro.”
“Bom, sim. Agora você acabou de confirmar, sou bem mais velha que você.”
“Estou curioso. Mas não vou ser indelicado. Papa sempre me disse que as mulheres são mais 'evoluídas' mesmo tendo a mesma idade que um homem, então... De qualquer forma, eu deveria imaginar algo assim.”
“Seu pai é um homem bem esperto, mas eu não tenho problemas com a minha idade. Fiz vinte e seis em abril.”
“Não é tão mais velha. Mas vou manter o título de senhorita se te agrada.” Sorri e sem perceber me mantive virando na cama. “Posso saber o dia de abril?”
“Você não vai acreditar.”
“E por que não?”
“Normalmente não acreditam. Faço aniversário dia primeiro de abril.”
“Oh. Agora entendi.” Estiquei meu braço e peguei minha listinha, anotando as últimas informações sobre ela. “Mas é um ótimo dia para se fazer aniversário, tirando essa coisa meio doida de 'dia da mentira', eu particularmente gosto de números ímpares, gosto de ter meu aniversário em um número ímpar.”
“Você gosta? Melhor pensar bem. Uma vez eu marquei uma festa com meus amigos do colégio, fiz os convites sozinha, eu tinha uns dez anos. Ninguém apareceu, pensaram que era mentira. Minha mãe ficou com tanta raiva que eu só tive outra festa cinco anos depois.”
“Bem, se eu pudesse trocaria com você. Eu tenho dois aniversários desde que nasci, apenas porque sim.”
“Quais são as datas?”
“28 e 29 de fevereiro.” Respirei fundo e preparei para a explicação. “É que eu nasci em Délhi na Índia, no dia 29 e quando vim para o Brasil, não deixaram me registrar no dia 29. E tecnicamente pela diferença de horário, eu nasceria no dia 28 se fosse aqui. Então papa comemora dois dias, mesmo quando o ano não tem um dia 29 em fevereiro.”
“O seu pai parece bem legal te dando aniversários seguidos.”
“Acho que ele parece bem legal mesmo.”
“Toda a sua família cresceu e foi criada na Índia? Acho que deve ser diferente crescer assim, um diferente bom.”
“A família do meu pai sim, minha mãe era brasileira, mas filha única e eu não sou próximo dos meus avós maternos. Resumindo, sou ligado a cultura do meu pai, apesar de ter sido criado aqui.”
“Eu não sei muito sobre a Índia. E o que eu sei deve estar errado.”
“Não é uma cultura fácil e nada parecida com a brasileira. Mas tem muita coisa boa, eu gosto de misturar as coisas, fazer ligações entre esses dois mundos que eu vivo. Já ouviu falar sobre a nossa dança? Ou Natya Shastra?”
“Eu só ouvi falar das vacas. Mas sei que tem milhares de outras coisas, juro que sei.”
“Natya é sobre a dança, Shastra é sobre as escrituras antigas. Basicamente é uma dança que pode envolver super técnicas ou muita emoção e teatro. É como todas as linguagens da arte em apenas um lugar. É algo que eu gosto de assistir. E sobre as vacas, bem... Tem muita coisa que é só senso comum.” Ri me lembrando que todo mundo fala alguma coisa sobre as vacas, quando me aproximei de Gabriel foi a mesma coisa. “Mas, e quanto a você? Tem alguma cultura carioca específica?”
“Eu não sei sobre o “especifico”, parece que tudo que a gente faz por aqui veio de outro lugar.”
“O Brasil é um país muito ‘miscigenado’, ouvi muito isso nas aulas. Tem sempre algo específico ou melhor, único. Quase como você com o feijão.”
“Obrigada por não implicar com isso. Acho que vou dormir agora.”
“Boa noite.”
“Boa noite, Ravi.”
Deixei o celular de lado e olhei para as minhas anotações sobre ela, não era nada muito substancial. Eu tinha que me lembrar de ir com calma com as pessoas, tive sorte por Gabriel acompanhar meu tempo em relação a amizades, mas isso não se repetia sempre. Normalmente se aproximar de alguém envolvia um processo lento.
Depois disso eu não demorei a dormir, sonhei com flores, feijões e um homem que mentia sobre ser o Van Gogh e no final, era alguém que eu deveria conhecer, mas não tão importante para que pudesse me lembrar de qualquer característica. Eu acordei ainda mais confuso.Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
Capa e artes por : shyminb e LizGael
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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...