Mamãe começou uma espécie de Guerra Fria quando lhe deixei saber dos meus planos. Ela não discutiu ou brigou, apenas me olhou quando acabei de falar sobre a biblioteca móvel, sem emitir nenhum som. E continuou assim, só abrindo a boca para dar respostas monossilábicas quando tentávamos iniciar qualquer conversa com ela, escorrendo para fora de qualquer assunto que envolvesse minha empreitada.
E eu deixei que ela continuasse com isso, porque já estava ansiosa demais com os meus próprios problemas ou possíveis problemas. Aquilo podia acabar tão mal e ser tão decepcionante, que eu sentia meus ossos moles toda vez que me imaginava dirigindo o carro velho do meu pai pelas ruas do Rio de Janeiro.
E a cada pausa que minha mente dava em relação aos preparativos — quando eu não estava pesquisando livros ou trajetos que poderiam ser usados. Uma voz na minha cabeça insistia em me lembrar que as estatísticas estavam contra mim e que tudo o que eu estava fazendo, todos os meus esforços e a expectativa que havia se formado, mesmo que eu tenha tentado abafá-la, só fariam com que o meu tombo fosse maior. Minha mente organizava os fatos de uma forma que parecesse que tudo aquilo era uma autossabotagem, como se eu estivesse pulando em mar aberto sem uma boia.
Mas era o Ravi que me mostrava uma outra perspectiva, parecendo genuinamente animado com todos os meus avanços, pela visão dele parecia que o meu negócio era a minha boia. Como se tudo o que estava fazendo fosse válido e exatamente o que eu precisava. A melhor ideia de todas, ele me mandava essas palavras toda vez que eu vinha com novidades. A melhor ideia de todas, eu repetia isso quando a minha mente pintava de forma vivida todos os piores finais e cenários.
—Moça. —A voz fina me alcançou quando eu estava com metade do meu corpo dentro da brasília do meu pai, tentando ver a melhor forma de organizar os livros em caixotes em cima dos bancos traseiros. Saí completamente e olhei para quem estava me chamando.
—Lucas? —Tentei disfarçar o tom de dúvida na minha voz, mas tinha certeza de quem se tratava quando vi um gibi em uma das mãos da criança. —Você demorou, hein.
—Eu esqueci de ler, mas depois li rápido.
Crianças não tinham o costume de sentar e ler, ultimamente haviam distrações demais, eu ficava feliz só por ele ter acabado.
—E gostou?
—Gostei, é parecido com o desenho, mas não tanto.
—E você prefere o livro ou o desenho?
—Depende. —Estendeu o gibi para mim, e eu peguei pensando que a nossa conversa havia acabado, me surpreendendo quando ele continuou falando. —Eu consigo ler rápido, e não tem problema se a minha mãe me chamar. Mas no desenho é mais colorido.
—É só essa a diferença pra você? —Olhei para o gibi, ele o trouxe nas mesmas condições que o levou. —Faz sentido. Quer pegar outro emprestado?
—Da Turma da Mônica?
—Quer ler outra coisa?
Entrei em casa e fui direto para o quarto. Havia deixado os livros nas mesmas caixas que eu os coloquei no dia da pintura, o que passou a facilitar bastante a minha vida. Foi fácil achar a caixa com os gibis, eu mexi nela até pular para outra. Eu não estava procurando, mas o peguei assim que o vi, pensando ainda agachada em frente aos outros livros, se era uma boa ideia ou não recomendar aquele tipo de leitura.
Acabei pegando um gibi como segunda opção e sai de novo, encontrando Lucas no mesmo lugar de antes, chutando as pedrinhas que estavam espalhadas na calçada.
—Olha aqui. —Estendi os dois livros para ele. —É a continuação do que você estava lendo antes, é muito bom também.
—E esse? —Levantou o outro livro. Era uma edição pocket do Pequeno Príncipe, com capa branca e desenhos mais coloridos, eu o havia ganhado em um sorteio, e mantive mesmo já tendo uma edição de capa dura que comprei quando ainda tinha um emprego. Lembro de ter lido aquele livro na escola onde fiz o Ensino Fundamental, e ele foi o meu preferido por muito tempo. Nessa época eu tinha a mesma idade de Lucas.
—É um livro que eu gosto, você pode achar interessante.
—É sobre o que? —Ele folheou as páginas, fazendo uma careta pela escassez de gravuras.
—Fala sobre um monte de coisa. Se não gostar pode me devolver antes, é só me chamar aqui, lembra do meu nome?
—É Maria. —Ele segurou os livros com as duas mãos. —É o nome da minha avó também.
Ele não ficou muito tempo depois disso, provavelmente por precisar fazer algo para sua mãe. Quando eu o vejo se afastar, penso se deveria ou não fazer uma ficha para ele, Ravi havia gastado um tempo para montar uma e me enviar por e-mail, mas acabei deixando a ideia de lado já que morávamos na mesma rua. E não era como se eu estivesse considerando tirar dinheiro de uma criança.
Peguei meu celular do bolso do meu short e abri minha conversa com Ravi, escrevendo uma mensagem: “Já tenho um cliente fixo agora. O melhor marketing ainda é o boca a boca.”. Mesmo sabendo que ele estava em horário de trabalho e que provavelmente não iria me responder naquele momento, mantenho o celular em minhas mãos.
—Deixa isso pra depois, Maria. —Meu pai falou e eu abaixei o celular. Já estávamos na mesa de jantar e o silencio me fazia abrir o aplicativo de mensagens de dois em dois minutos, tentando pegar um pouco da positividade de Ravi, lendo as mensagens antigas enquanto ele não via a nova.
—Estou resolvendo algumas coisas, desculpa.
—É sobre a biblioteca? —O tom dele era gentil, e eu despedacei o peixe no meu prato antes de começar a falar.
—Eu estou nos últimos preparativos, quero começar semana que vem.
—E vai pra onde com o carro?
—Pensei em ir para perto da Praça XV, no terminal das barcas, só ainda não sei sobre o estacionamento. —Papai abriu a boca para falar alguma coisa, mas o som do garfo da minha mãe batendo com força no prato de vidro chamou a atenção de nós dois. E apenas a encaramos mudos, esperando, e depois apenas observando quando ela se levantou e saiu da mesa.Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril

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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...