A dor veio primeiro quando senti algo repuxando o topo da minha cabeça. Mesmo com os olhos fechados eu podia sentir a luz, era um novo dia e a julgar pela secura dos meus lábios e garganta, algo havia dado errado com o meu plano de beber até morrer. Porque eu ainda estava viva. Viva e de ressaca.
Algo ainda estava fazendo pressão na minha cabeça, então com alguma dificuldade eu ergui a mão para expulsar o que quer que fosse, sentindo a textura macia de pelos e ouvindo um miado. Devagar eu abro meus olhos, minha mão ainda segurando o que poderia ser, pelo menos eu esperava que fosse, a Cacau.
O primeiro problema que constatei era que uma de suas patinhas estava enroscada no meu cabelo, em algum momento, talvez enquanto ela tentava me acordar, ficou presa na armadilha que eram meus cachos. Isso eu consegui resolver rapidamente, fazendo com que minha cabeça doesse mais ainda, mas no final libertando a gata.
E ver Cacau se afastar para o seu banquinho do lado da porta, me levou para o meu segundo problema. Ainda deitada eu virei um pouco a cabeça, me perguntando em que momento da noite havia ido parar ali, deitada no meio da sala.
—Você não começou a beber dentro de casa? —Apenas meus olhos se moveram em direção a voz de mamãe, que estava em frente a estante, pegando com cuidado as pequenas estátuas e porta-retratos, e os colocando em caixas de papelão. —Estava tentando sair e desmaiou?
Pisco em resposta, levando um tempo incrivelmente longo para me sentar de pernas cruzadas e voltar a olhar para ela.
—Quanto você bebeu ontem? —Passei minha língua seca pelos meus lábios secos.
—Umas cinco.
—Garrafas?
—Acho que latas.
—E por que bebeu? —Havia uma pontada de preocupação na sua voz, que ela tentava esconder olhando aleatoriamente para os lados da casa.
—Não consegui o emprego.
—Está tudo bem, aposto que você foi ótima. —Ela me consolou apesar do meu tom indiferente. —É difícil mesmo arranjar um emprego hoje em dia, mas você vai conseguir no tempo certo.
—Talvez a senhora tenha que me bancar pelo resto da vida. —Ela me olhou.
—Eu disse que está difícil arranjar um emprego, mas não que é impossível. —Murmurou alguma coisa que eu não consegui ouvir e voltou a encaixotar os enfeites.
—Porque está fazendo isso?
Deito novamente no chão, fechando os olhos e deixando que minha alma e corpo entrem em harmonia novamente. Aparentemente eu já estava na época da minha vida que os sintomas de uma ressaca eram os mesmos de um atropelamento por carreta.
—Seu pai vai pintar a casa.
—De branco?
—De salmão.
—A senhora o convenceu?
Ela estalou a língua e eu abri os olhos.
—Não é questão de convencer, ele descobriu sozinho que eu estava certa.
—Sozinho, é?
—Ele pode ser esperto às vezes.
Quase ri, mas parei prevendo a dor que viria com o movimento, fechando os olhos.
—Vai passar o dia aí? Já é quase uma hora.
Eu não podia fazer isso, mas me deixei ali por mais um tempo. No dia anterior eu havia recebido um e-mail da Universidade onde havia feito a minha entrevista, eles agradeceram pela minha participação no processo seletivo e logo depois informaram que infelizmente eu não me encaixava no perfil da empresa. Não havia muito mais a se falar, com o tempo eu aprendi que o tom desses e-mails era sempre o mesmo, simpático, mas não tão gentil, e certeiro, de um jeito que não pareça que foi feito de forma rápida demais.
Eu conhecia todas as frases que eles usavam, sabia que alguns recrutadores nem lembravam do meu rosto, do que eu havia dito. Mas eu sempre lembrava, de tudo. Do que eu havia falado, da dificuldade na hora de escolher uma roupa, do meu nervosismo. E era por isso que, quando as negativas vinham, eu levava um tempo repassando isso tudo, me perguntando o que havia dado errado daquela vez.
—Você está bem? —Ouvi a voz de papai e comecei a me levantar completamente. Ele estava com suas roupas velhas de pintar a casa, seu rosto envolto em panos.
—Vai precisar de ajuda, pai? —Fiz pressão no lado direito da minha cabeça, tentando de alguma forma aliviar a dor.
—Você não quer ajuda?
Não precisava de um espelho para saber que o meu estado não é dos melhores.
—Vai tomar um banho. —Papai se abaixou e pegou Cacau, que não lutou, mas também não pareceu feliz por ser deslocada. —E leve a gata pro seu quarto, vou ficar ocupado aqui.
Precisei de dois litros de agua, dois comprimidos de dipirona e um banho quente para me sentir quase eu mesma de novo, minha mente nublada ganhando clareza aos poucos, então me lembrei do que havia feito na noite anterior, quando me sentei na beirada da minha cama enrolada em uma toalha, vislumbrei a conversa que eu tinha certeza que havia tido com Ravi.
E continuei sentada quando sem nenhuma surpresa, percebi que estava sendo uma patética chorona por vários dias seguidos. Concluí também que não adiantava entrar nesse assunto com ele, porque já havia percebido que Ravi era um tipo gentil de pessoa honesta — mesmo que quase todo mundo não conseguisse ser as duas coisas ao mesmo tempo. Ele não riria de mim, falando sobre como uma quase desconhecida ligou bêbada no meio da noite, também não acho que tenha se sentido desconfortável nas vezes que eu o abordei para deixar claro a minha deficiência social. Na verdade, era como se ele estivesse esperando por isso.
E não tinha como ele saber os motivos que levavam a minha distância ser necessária, ela mantinha a impressão de que eu era algo novo e bom que poderia ser descoberto, mas que sempre fugia no último minuto. Para mim essa era a forma menos vergonhosa de decepcionar alguém.
Passei parte do dia trancada no quarto, deitada na minha cama relendo meu livro favorito, “O Sol é para todos", com Cacau esticada em cima dos meus pés. Mamãe me visitou com biscoitos salgados e uma garrafa grande de água, parecendo adivinhar que eu queria muito aquilo e não tinha forças para ir buscar. Mas o dia estava quente e o barulho do ventilador de teto somado com a comoção que meus pais causavam por causa da tintura do lado de fora, me deu forças para levantar e cumprir o meu único compromisso para a tarde de quarta.
—Como você está?
Dra. Mendes sempre começava nossas sessões com a mesma pergunta, e eu sempre respondia com um: “ótima, e você?”, não só pelo bem da cordialidade, mas também porque parecia estranho iniciar uma conversa com as coisas que me incomodavam. Por isso nós duas parecemos surpresas quando eu soltei um:
—Não muito bem.
—O que aconteceu? —Cruzou as pernas e esperou, o lápis em sua mão pairando sobre o caderninho de notas.
—Não consegui emprego de novo.
—Era algo que você queria?
—Sim, eu realmente preciso de um emprego agora.
Ela anotou alguma coisa antes de começar a falar.
—Eu perguntei se você queria o emprego, não se você precisava dele.
—Não é a mesma coisa?
—Maria, porque escolheu seu curso? —Olhou para as unhas dos meus pés, expostas por conta da minha rasteirinha. Já haviam me feito aquela pergunta em entrevistas de emprego, e eu tinha uma resposta pronta para isso, mas por algum motivo não me sentia confortável em compartilhá-la com a doutora. —É porque você gosta de livros? —Senti que ela não estava tentando me ajudar ao oferecer aquela resposta, mas concordei mesmo assim.
—Sim, eu amo livros.
—Mas no seu antigo emprego você não cuidava dos livros.
Fiquei surpresa por ela lembrar dessa informação, que foi dada de forma descomprometida várias sessões atrás.
—Não, eu ficava com os arquivos, mas é assim normalmente.
—E mesmo assim você queria ficar no emprego.
—Bom, sim. Era um emprego afinal de contas. —Tentei não parecer na defensiva, mas definitivamente falhei nisso.
—E você mexeria com livros nesse novo emprego que você perdeu? —Ela não esperou uma resposta, apenas continuou. —Você precisa gostar do seu trabalho, Maria. Pelos livros ou por qualquer coisa, ter um salário não é a solução de todos os seus problemas.
—Mas com certeza amenizaria a maioria deles.
—Você precisa descobrir do que você gosta, o que você quer fazer de verdade. Não precisa ser algo para o resto da vida, mas precisa ser algo que você realmente quer.
—Hobbys não dão dinheiro. —Minha fala havia se tornado mais lenta, e ela pareceu perceber.
—Pouca coisa dá dinheiro, na maioria das vezes você precisa trabalhar por ele.
—Eu estou tentando fazer isso.
—Não, você só está reclamando que não está conseguindo.
—E por isso a culpa é toda minha? —Respondi rápido demais, dra. Mendes permaneceu calma.
—Mas você sabe o que fazer.
—Sim, eu sei o que preciso fazer, mas saber não torna tudo mais simples.
—Não é nada simples, Maria. Demora pra gente se conhecer, e demora muito mais pra gente conseguir conviver com esse conhecimento. Mas as coisas só vão acontecer se você tentar.
—Eu estou tentando.
—Acho que talvez você esteja presa nas suas desculpas, e não, não estou diminuindo seus motivos. Mas você é mais do que eles.
Por um momento eu quis falar para ela. Falar sobre como a prosopagnosia estava na minha família há gerações e chegou em mim de forma mais agressiva. Pensei em contar sobre meus medos em relação as outras pessoas, que eu queria ser importante para alguém da mesma forma que queria que alguém fosse importante para mim.
Mas havia aquele pensamento, de que nada seria verdadeiro e de que eu acabaria estragando tudo em algum momento. De que mesmo sem a doença, seria difícil manter qualquer pessoa.
—Eu estou tentando. —Repeti. —Todo dia eu estou tentando, eu estou aqui porque eu ainda estou tentando, isso não conta de alguma forma?
—Lógico que conta. —Ela descruza as pernas e se levanta, colocando o bloquinho e o lápis em cima de sua mesa. Só observo enquanto ela aproxima de um dos quadros, limpando a garganta para ler a frase que havia embaixo da garotinha negra com um sorriso banguela. — “Amanhã será seu melhor dia.” Gosta da frase? —Ela continuava em pé, me olhando de cima.
—Acho que já ouvi em algum lugar.
—Talvez algo parecido, mas essa aqui foi escrita por mim.
—É uma boa frase. —Ela voltou a andar pelo escritório, parando em frente a outro quadro.
—E essa? “Dias ruins promovem gratidão.”
—É sua também?
—Sim, fui eu que escrevi. Escrevi todas. —Fez um gesto amplo com a mão. —Escrevi porque elas me convenciam a continuar tentando também.
Dra. Mendes estava me dando mais do que eu dei a ela, estava em seus olhos, aquele era o começo do nosso voto de confiança, ela havia ocupado a primeira brecha que eu abri.
—Eu preciso me convencer?
—Sim, precisa se convencer que vale a pena.
—O que vale a pena? —Ela tornou a se sentar, mas antes resgatou seu bloquinho e o lápis.
—Você vale a pena, Maria. Precisa se convencer disso primeiro. —Olhei novamente para os meus pés, eu pressionava os meus dedos sobre a sandália, os fazendo enrugar. —Não é errado querer que as pessoas gostem de você, também não é errado se esforçar para isso. Mas primeiro você precisa gostar de si própria, precisa se reconhecer nas coisas que faz.
—Acha que eu deveria repensar a minha profissão? —Arrisquei, não sabendo se ela responderia ou não a minha pergunta.
—Acho que você precisa estar feliz com o que faz, e também acho que precisa começar a correr atrás das coisas que quer.
—Isso é um pouco mais complicado na prática.
—É sim, mas coisas interessantes podem acontecer depois que damos uma chance real. —Havia um duplo sentido na frase. —E não tem nada vindo até você, é sinal de que você precisa começar a buscar pelas coisas.
—Buscar pelas coisas?
—Sim, e dar chances. Você pode se surpreender com as pessoas.Escrito por: Marveril e LuaInAHoodie
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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...