Ravi

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Flor. Por extensão, é qualquer planta cultivada como ornamental por suas flores. Ou como eu gosto de chamar, a identidade mais íntima de alguém.
Apesar de parecem frágeis e delicadas, as flores tem muito a contar, minha mãe me disse. E apesar de não ter muito para lembrar, a maneira como acreditava nas flores e parecia viver em harmonia com elas por perto, é sempre a primeira coisa que me recordo quando penso nela. E quando eu não pude mais reconhecer ninguém e até mesmo o meu próprio rosto no espelho parecia estranho, eu ainda tinha as flores.
E elas sempre parecem estar certas, por exemplo, a flor-de-lis me falou sobre poder, lealdade, honra e pureza de alma, é uma das minhas preferidas, eu admito. Ela foi muito usada por reis na antiguidade e apesar de não saber se eles mereciam o símbolo e a mensagem dela, eu acredito que sua estrutura como um todo é perfeita para alguém tão "importante". E por isso, desde que comecei a dar flores aos rostos das pessoas, apenas duas haviam recebido a flor-de-lis, mas o número aumentou naquela noite.
Até então eu havia apenas memorizado a postura excelente e a aura forte que o Dr. Camilo esbanjava, eu não precisava entender o quebra-cabeças que o seu rosto parecia para mim para saber que ele era um homem diferente, porém eu lhe encaixei a flor-de-lis no rosto, porque ele preenchia todos os requisitos.
O zoológico havia recebido várias aves feridas e desnutridas a tarde e passamos um bom tempo lidando com asas e bicos quebrados, feridas profundas e vários pássaros ariscos e inseguros. Mas o Dr. Camilo, chefe dos veterinários, controlou tudo muito bem, dividindo a equipe e nos orientando quando preciso. Por isso decidi por essa espécie de flor, não só porque era meu chefe, mas ele tinha mesmo o que era preciso para liderar, somado a uma personalidade justa e marcante.
-Bom trabalho, Ravi. -Ele veio até mim na área dos pássaros. -Eu vi o cuidado que teve com as aves que te designei, mesmo elas sendo bem ariscas. Amanhã vamos ter mais tempo e eu vou ensinar algumas coisas. -Bateu em meus ombros. -Deixa que eu assumo daqui, pode ir pra casa.
-Eu ainda tenho que checar o Chaves. -Disse depois de conferir os curativos das araras.
-Pode deixar que eu faço isso, faz tempo que não converso com ele mesmo. -Sorriu me guiando até fora da sala. -Não podemos pagar tanta hora-extra assim, então vá pra casa, garoto.
-Tudo bem. -De qualquer forma eu precisava estar em casa logo. -Estou indo, boa noite. -Fui para o vestiário, me troquei e peguei as minhas coisas.
Antes de ir embora eu passei próximo ao viveiro do Chaves, o papagaio, e vi o doutor rindo e acariciando a cabeça dele. Não me notaram e quando meu celular começou a vibrar no bolso eu tratei de me apressar. Soraia havia dito que precisava voltar pra casa e meu pai ainda estava acordado perguntando por mim.
Eu peguei o primeiro ônibus e a meia hora até o centro foi como uma tortura, porque eu só queria chegar em casa logo. O segundo ônibus demorou a passar, no aplicativo dizia que ainda faltavam quinze minutos, então eu optei pelo o que passava mais próximo de casa e fui andando pelo resto do caminho.
São Paulo estava quente e abafada, mesmo naquela época do ano, na praça perto de casa havia algumas crianças e casais, os carros no trânsito com as janelas abertas, comprando a água dos vendedores no semáforo e os sorvetes da senhora com a barraquinha perto da praça. Atravessei a rua, cumprimentei o cachorro caramelo do bairro e puxei minha chave, abrindo o portão traseiro e entrando em casa.
Ouvi a voz de Soraia do corredor separando a garagem e a cozinha, ela parecia um pouco impaciente.
-Senhor Manu, o Ravi já vai chegar, mas precisa comer para tomar seu remédio. -Ela explicou, mas não parecia ser a primeira vez. -Vamos, coma só um pouco.
-Moça, eu não sou um bebê, posso fazer sozinho, eu só quero o meu menino aqui, por que ele ainda não voltou? Já passou das seis horas. -O sotaque do meu pai estava de volta, significava que parte de sua memória havia sumido por um tempo.
-Estou aqui, papa! -Me aproximei, com um tom suave.
Ele pareceu confuso, talvez fosse o meu cabelo, não podia dizer com certeza.
-O que aconteceu com seu cabelo? Onde estava uma hora dessas? -Ele se levantou da cadeira e eu o abracei.
-Desculpe, papa. Precisei fazer um trabalho de última hora. -Eu o fiz sentar de novo e me mantive ao lado dele, piscando para Soraia que apenas colocou mais um prato a mesa. -Não precisava me esperar, vamos comer, não está com fome?
-Mas, filho, quem é essa moça? Ela disse que é sua amiga, você não me disse que iríamos receber visitas. -Ele sussurrou em seu idioma natal e eu levei alguns segundos para compreender tudo.
-Papa, essa é a Soraia, eu pedi que ela viesse fazer companhia para o senhor. -Me servi, sob um olhar desconfiado.
-Eu preciso ir pra casa, só falta o remédio das nove e meia. -Ela explicou recolhendo suas coisas. -Hoje ele está bem aéreo. -Apenas balbuciou essa parte. -Até amanhã!
Soraia saiu e eu comecei a comer, sendo bombardeado por perguntas sobre o porquê meu cabelo estava grande, ou o porquê Soraia esteve com papa o tempo todo, dando remédios e o acompanhando até mesmo no restaurante. A memória do papa voltou oito anos atrás, Soraia ainda não havia chegado à vizinhança e ele ainda trabalhava no restaurante.
-Por que eu tenho que tomar esse remédio? -Me perguntou quando coloquei em sua mão um copo de água e o comprimido. -Não estou doente.
-Por isso mesmo. -Usei o velho truque que ele mesmo já fez comigo várias vezes. -Isso vai te ajudar a continuar saudável, confie em mim, papa!
Ele tomou o remédio depois de alguns segundos me encarando, reparei que a barba dele já estava crescendo, por isso também o ajudei a fazer antes de levá-lo para o quarto.
-É bom te ter ajudando, mas não precisa de tudo isso, Ravi. -Ele reclamou quando o estava cobrindo, eu mais do que ninguém sabia que ele estava odiando toda aquela atenção, papa era uma das duas outras pessoas com uma flor-de-lis, ele sempre foi o que estava no comando, ajudando e tomando a frente e não o contrário. -Você tem que estudar, fazer suas coisas.
-Tudo bem, essas são minhas coisas, papa. Eu já estudei o suficiente por hoje.
-Seu tio Indra está aqui, acredita? -Ele pareceu lembrar de repente. Tio Indra veio para o Brasil desde que descobrimos o Alzheimer de papa.
-Você o viu onde? No restaurante? -Puxei a conversa.
-Sim... Ele está com o cabelo mais curto e se julgasse só pelas roupas, não diria que ele é um estrangeiro. -Tio Indra havia se adaptado aos costumes e a cultura daqui há dois anos.
-Isso é legal, ele sempre reclamava que era difícil usar kurta¹ com o clima abafado daqui.
-Acho que ele vai ficar por um tempo, isso é bom, estava com saudades do meu irmão. -Ele sorriu, papa tinha visto tio Indra no dia anterior e brigado com ele até.
-Certo, vai ter tempo com o tio Indra, então descanse, tá bem?
-Eu não tive tempo com você, me conte como foi na aula, conseguiu fazer algum amigo? Reconheceu aquele menino que te ajudou? -Ele parecia interessado e animado demais, então continuei ao seu lado.
-Foi boa a aula, papa. Eu fiz um amigo, o nome dele é Gabriel e foi ele que me ajudou o outro dia.
Fiquei mais ou menos uma hora conversando com papa, até ele pegar no sono, era bom relembrar aquelas coisas, mergulhar no mundo em que ele estava vivendo, eu entendia o que ele estava passando de qualquer maneira, não reconhecer as pessoas a sua volta pelo menos era algo que eu vivia na pele. Deixei a porta do quarto entreaberta e segui para os meus afazeres da noite, normalmente a essa hora eu já estaria dormindo, já que sempre chego às seis e ajeito tudo antes do jantar, mas por causa da hora-extra, passava das dez e eu ainda estava limpando a cozinha. Recebi uma mensagem de tio Indra assim que fui para o quarto, ele estava confirmando que ficaria com papa no próximo fim de semana e assim eu poderia ir a aquela exposição no centro. Papa ainda estava dormindo quando cheguei, baixei o brilho do notebook e tentei fazer o mínimo de barulho possível, Gabriel estava animado, me contando sobre suas férias no Rio e sobre como a família da namorada dele era legal. Eu, normalmente, deixaria todos os meus pensamentos se acalmarem na cama e como já era tarde, não demoraria a pegar no sono, já que estava cansado, mas desde cedo me sentia um tanto melancólico demais.
Talvez o estresse de tudo havia finalmente me derrubado. Talvez eu só devesse ter ido dormir, mas eu continuei com meu notebook, pesquisando coisas aleatórias no google e fazendo anotações mentais para as tarefas do dia seguinte. Respondi Gabriel o mais animado que consegui, mas ele sempre foi mais observador e captou meu humor mesmo com os emojis que usei para disfarçar.
Deveria entrar no grupo, faz tempo que não fala com eles. Não precisa contar nada sobre você, só conversar com quem pode te entender, já faz diferença. -Gabriel.
Li a mensagem, sabendo que ele estava certo, respondi que iria fazer, porque não queria preocupá-lo ainda mais. E só entrei no site, pois as palavras dele estavam na minha mente e eu não tinha previsão alguma de dormir ou algo mais útil para fazer que não acordasse o papa.
A interface do site havia mudado como alertaram na última atualização, havia um pequeno texto logo na página inicial e assim que eu entrei em meu perfil, percebi algumas notificações. Jonas, um dos moderadores havia me mandado uma mensagem privada, alertas da nova atualização e de vários chats abertos no período em que fiquei fora. Naveguei pelas notas, todos os dias havia um texto diferente para motivar as pessoas por trás dos perfis e frases como "você é importante" ou "sua singularidade é importante" apareciam várias vezes, mas as que eu consegui ler de toda a semana, tinham um tom um tanto diferente.
"Está tudo bem sentir um vazio às vezes, você não é o único apesar de em alguns instantes parecer que sim. Estamos todos aqui, lutando com nossos vazios, também."
Enquanto eu me aventurava pelo significado daquela nota, recebi mais uma notificação, outro chat havia sido criado, mas apenas uma pessoa estava online.
Maria, eu a tinha visto várias vezes em alguns chats, mas nunca chegamos a conversar diretamente como com Matheus ou o Evan. Entrei no chat e esperei, esperei por cinco minutos até entender que ela também deveria estar esperando.
"Olá!"
Digitei e ponderei por alguns segundos se enviava ou não, mas a incerteza parecia me dominar à medida que esperava, então eu enviei, porque era a tecla mais próxima do meu dedo.
"Oi"
Não estava esperando por sua resposta tão rápido, por isso apaguei e escrevi diversas coisas antes de enviar um sincero:
"Como você está?"
Porque no final era isso o que importava, não era?
"Eu estou bem"
Comecei a pensar no que digitar depois disso, mas a continuação da mensagem logo chegou. "E você?"
Talvez eu não fosse o único que não estava tão acostumado assim em ter conversas com outras pessoas.
"Bem. Mas, sem sono, mesmo precisando dormir."
Tentei puxar um assunto.
"Espera que a nossa conversa te dê sono?"
"Espero que me faça apenas passar um bom tempo, eu não estaria aqui se procurasse por sono."
"Eu estava brincando." Olhei para a mensagem que ela enviou, apenas considerando se minha resposta anterior foi tão ruim quanto eu achava que foi, mas ela logo mandou outra. "Acho que não somos muito bons nisso."
"Tem razão. Me desculpa, eu também costumo ficar deprimido demais depois das dez."
"Eu começo a ficar pra baixo lá pelas seis."
"Tão cedo? Deve ser cansativo." Eu olhei para o relógio no mesmo instante, quase meia noite, com certeza é cansativo.
"Não tanto, tristeza te dá margem para um monte de coisa."
"Concordo. Mas o que você costuma fazer quando fica triste?"
"Eu leio, e escuto músicas, às vezes cozinho."
"O que gosta de ler?"
"Livros tristes."
"Que tipo de livros tristes?"
"Os que as pessoas morrem, os que os casais não ficam juntos. Os que são pessimamente escritos."
"Não os chamo de tristes, quer dizer, eles são os realistas no final das contas, não é?"
"Bom, eles são realistas por serem tristes."
"Você tem um ponto. Mas os livros com finais felizes também são pessimamente escritos, às vezes, e bons."
"Os livros com finais felizes são os mais tristes."
Pensei sobre o que ela escreveu, de toda forma, era uma verdade, não havia o que argumentar, então eu não o fiz.
"Imagino que escute música triste também, mas o que você cozinha quando está triste, então?"
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Kurta¹: camisa solta e sem gola, muito usada no sul da Ásia.

Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
Capa e artes por: shyminb e LizGael

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