O ser humano é considerado superior pela capacidade de pensar, tomar decisões, amar e simplesmente por não depender mais de seus instintos. Mas esse intelecto maior que nos “diferencia” dos animais, acredito que é o que nos torna inferiores em dezenas de ocasiões. Quando entrei na faculdade eu tive que lidar com muitas coisas diferentes, porém no final, eu acabei me apaixonando ainda mais pelos animais e a maneira como são tão puros e ao chegar no zoológico e ter contato com toda a fauna, esse amor dentro de mim cresceu ainda mais.
É assim que eu vivo, essa incrível parte da minha vida é a estrela brilhante que alivia as dores dos dias nem tão incríveis. Depois da conversa que tive com Maria, eu acabei me sentindo impotente e eu só havia me sentido dessa maneira no primeiro episódio de esquecimento do meu pai, claro que não foi com a mesma intensidade, mas eu verdadeiramente odeio me sentir assim. Havia alguns dias que eu tinha sido escalado para cuidar dos animais maiores, então eu pude me distanciar desse sentimento e provar de momentos que clarearam meus pensamentos.
Naquela quinta-feira terrivelmente quente, eu fui escalado para ajudar com Pororó, o hipopótamo. Ele não era como a maioria da sua espécie, aliás, era uma grande exceção, totalmente dócil e receptivo, ele me deixou escovar sua bocarra com uma expressão doce e um brilho divertido nos olhos. Era a terceira vez que fazia aquilo na semana, então ele já estava acostumado comigo. O biólogo Ariel me acompanhou durante as duas outras vezes, mas nesse dia eu estava sozinho, porque a Faustine, nossa chimpanzé diabética, acordou um tanto estranha e a equipe se mobilizou para fazer exames e cuidar dela, então minha tarefa era ajudar no que fosse necessário no trato de todos os outros e eu estava me saindo bem sozinho, mas confesso que com Pororó me mantive um tanto mais confortável por toda a aura que ele esbanjava.
—Quer dizer, é difícil pra ela e eu mal a conheço para que valha alguma coisa eu dizer isso, mas eu sei que é importante entender como é o seu rosto, se você tem traços fortes, ou leves, se é alguém que julgaria bonito ou não, realmente se reconhecer em frente ao espelho. Eu mais do que ninguém sei disso, mas ainda há tantas coisas para descobrir sobre si mesmo, sobre ela. —Enquanto escovava os dentes enormes de Pororó, eu desabafei, porque ele parecia me entender, ou pelo menos eu gostava de acreditar nisso. —Ela é do tipo que age por impulso ou é mais racional em situações de pressão ou medo? Ela gosta de filmes de terror? Sente medo em parques temáticos como “zumbis” ou “fantasmas”? Prefere doce ou salgado? Poesia ou narrativas? —Cocei as gengivas dele que ficou todo animado e acho que se pudesse me abraçaria. —Pororó, você entende o que quero dizer, não é? Esses detalhes são preciosos também e não é preciso se reconhecer no espelho, às vezes só temos que olhar por outro ângulo. Eu queria dizer isso a ela e fazer ela se sentir bem.
O hipopótamo bufou, espalhando um pouco de água em mim e voltando a se esconder no lago, já que eu havia terminado, mas sua cabeça ficou de fora e ele permaneceu me encarando como se quisesse dizer alguma coisa. E foi como uma grande epifania, quer dizer, era o jeito dele me dizer para ir embora, mas também me ocorreu que aquele era o jeito da Maria.
Ela não estava me pedindo ajuda, não estava pedindo nada, inclusive.
Isso ficou girando na minha cabeça o dia todo. Enquanto eu alimentava os animais e durante a reunião que tivemos no fim do dia, quando estava voltando para casa e até quando Gabriel estava tagarelando no jantar. Papa estava em mais um episódio, ele voltou tempo o suficiente para não me reconhecer, já que para ele eu era um garotinho, mas Gabriel sempre teve muito mais tato nisso do que eu, ele se apresentou pela milésima vez, mas como se fosse a primeira e fez o meu pai se sentir confortável, mesmo quando ele se agitou ao ver a data no noticiário. Todos temos um ponto fraco e o do meu pai era eu, e a maneira como Gabriel sabia usar isso era algo que estava um tanto além das minhas habilidades naquela noite pelo menos.
—Senhor Manu, o seu filho é tipo um super gênio, sabe? Consegue me entender né? —Ele falava devagar, o que claramente deixava o meu pai frustrado, mas por causa do tom animado e paciente que ele usava era cruel se irritar também. —Ele fez um trabalho tão incrível no último semestre da faculdade, tinha um professor muito chato que a gente chamava de “Erva Daninha” e até ele deu nota máxima pro Ravi! Disseram que um dia ele iria “revolucionar a medicina veterinária”, o senhor precisava ter visto.
Gabriel também era muito bom em aumentar um ou cinquenta pontos nas histórias que contava, mas ao menos fez o meu pai rir algumas vezes e até mesmo eu me peguei interessado na minha própria história através dos olhos dele.
—Obrigado. —Eu o agradeci quando estávamos apenas nós.
Papa já havia pegado no sono e eu fiz aquela batida que Gabriel tanto gostava, então fomos para o quintal, nos sentamos perto do jardim e ficamos bebendo e comendo salgadinho.
—Sabe o quanto eu o considero. —Balançou a cabeça batendo em meu ombro. —Além do mais, há tempo que não fazíamos isso. Viu como ele ficou feliz? Só precisa lembrar das coisas boas com ele.
—Eu sei. —Os episódios não eram mais um dilema há um ano, apesar de terem ficado frequentes.
—O que aconteceu? Algo no trabalho ou só não é um bom dia?
—O dia foi bom, eu escovei os dentes de um hipopótamo e cuidei de vários filhotes, fui elogiado na reunião, escalado para o próximo treinamento, provavelmente vou cuidar das elefoas e você sabe o quanto eu gosto de elefantes. —Eu bebi o que tinha no meu copo e me servi um pouco mais, medindo o que era realmente necessário contar. —O meu dia foi bom, mas...
—Espere. —Ele me interrompeu. —Nesses oito anos de indústria, chamada amizade com Ravi, você só usou esse tom três vezes, a primeira quando me contou do seu problema, a segunda quando estava apaixonado por aquela garota maluca no ensino médio e a última quando descobriu o Alzheimer do seu pai. Seja o que for é algo grande pra você então deixa eu me preparar. —Ele fez drama, respirando fundo, arregaçando as mangas e dando um último gole na bebida antes de se virar pra mim. —Pode continuar.
—O nome dela é Maria. —Eu o parei antes que pudesse voltar a me interromper. —Eu a conheci no chat, não sei se posso a chamar de amiga ainda, mas a gente tem conversado um pouco e no domingo ela se abriu comigo e eu só estou me sentindo impotente por não poder ajudá-la.
—E você odeia isso. —Ele completou. —Mas sabe que não é culpa sua, né?
—Eu sei. —Respirei fundo. —Ela precisa passar por isso, todos nós precisamos passar por essas coisas alguma vez na vida, mas eu só queria poder fazer algo pra ela entender que tá tudo bem, que tudo é uma droga e ao mesmo tempo não é grande coisa, ela é o que importa.
—Você pode me dizer isso, porque sou seu amigo. Eu posso até ficar bravo e fazer drama por algum tempo, mas vamos voltar a nos falar, porque você faz parte da minha vida e em noventa e nove por cento dos casos está sempre certo e vice e versa. —Ele disse como se fosse simples. —Mas precisa conquistar isso com ela. Apesar de que se ela veio conversar sobre algo importante com você, significa que você não é tão insignificante assim.
—Sei que tenho que conquistar a amizade dela, eu estou tentando e hoje o Pororó me fez perceber que é só o jeito dela quando estamos quase chegando a algum lugar e então ela volta alguns passos e se fecha de novo. —Suspirei. —Acho que me importo, porque ela me deu algo para quebrar aquela coisa que estava me sugando. De alguma forma sinto que preciso retribuir.
—É simples pra você ver isso, porque você está aqui, fora do círculo dela. —Explicou. —Não espere que seja simples pra ela já que é ela que está sofrendo agora.
—Você tem razão. —Gabriel às vezes tinha esse poder de iluminar ainda mais as coisas pra mim.
—Foi o que eu disse. Noventa e nove por cento, cara!
No dia seguinte, como havia suspeitado, iniciei um treinamento especial para lidar com animais de grande porte com algum tipo de trauma, então tive que chegar mais cedo e sair mais tarde, na verdade foi assim durante quatro dias. Meus almoços foram corridos, os dias cheios de informações e atividades práticas com Serva e Hangun, as elefoas e Dingo, o urso-pardo, eu não tive muito espaço para pensar em outra coisa que não fosse banho e descanso. Dr. Camilo pegou no meu pé, pedindo relatórios no final do dia e na terça-feira, ele ainda me fez passar por um pequeno estudo de caso, então eu cheguei em casa ainda mais tarde, estressado e desgastado.
Eu estava tão cansado que só queria a minha cama, mas também tão sujo quanto, por isso me reservei o direito de tomar um banho quente de banheira e pela quarta vez em três anos eu usei aqueles jatos massageadores e me senti um idiota por ter me esquecido do quanto era bom e não ter usado mais vezes.
Terminei o banho e fui para o meu quarto. Me joguei na cama, estava pronto para dormir, acordaria cedo ainda para o primeiro dia oficial no cuidado com as elefoas e não queria me dar ao luxo de olhar para o celular. Minhas costas estavam reclamando, por isso demorei a achar uma posição confortável o suficiente para sentir o sono me abraçar, tinha o lençol me cobrindo nos pontos estratégicos para não sentir calor durante a noite, mas ao mesmo tempo me manter seguro dos “monstros puxadores de pés”, tudo estava na maior perfeição e eu ouvi meu celular tocar.
Claro que eu me assustei, não recebia ligações tão tarde, a não ser que fosse do trabalho, eu pensei que podia haver um problema com algum animal. Meus olhos já haviam se acostumado com o escuro, por isso não consegui ler o nome no visor antes de atender, apenas o fiz rápido.
—Alô? O que aconteceu?
—Ravi? —Era uma voz feminina, busquei em minha mente alguém que pudesse se encaixar naquele tom, mas falhei.
—Sim, quem fala?
—É a Maria.
—Maria? —Pisquei algumas vezes e olhei o visor. —Oi, o que aconteceu?
—Lembra da nossa conversa? —Ela falou um tanto enrolada.
—A conversa? Sim. Eu me lembro. —Sentei e passei a mão pelo rosto, despertando totalmente. —O que tem ela?
—Talvez você me ache uma pessoa pra baixo agora, e é normal que ache, mas eu só queria dizer que eu não sou sempre assim. Sério mesmo, não sou. Na maioria das vezes realmente não sou.
—Não te acho pra baixo. Você foi humana. Até mais do que muita gente por aí. —Respirei fundo. —Por um lado eu gostei de saber que mesmo que minimamente você confiou em mim naquele momento para dizer tudo.
—Não foi muito intencional, mas não é como se eu tivesse chorado, então não preciso ficar com vergonha. Não com muita.
—Não precisa sentir vergonha. Acho que boas amizades começam assim, não é? —Sorri. —E nós podemos fazer isso outras vezes. Então se precisar pode me chamar ou até ligar também. Mas se te faz sentir melhor, eu de vez em quando posso desabafar sobre qualquer coisa e aí você não precisa sentir vergonha.
—Sabe o que também é vergonhoso, Ravi? —Ela perguntou com um tom sério.
—O quê?
—Quando eu tinha 20, três latinhas de cerveja não conseguiam me derrubar. Isso não era muita coisa, elas não eram tão fortes.
—Com 20? —Minha mente ainda estava lenta. —Cerveja?
—É, as coisas começavam a girar lá pela sexta, sabe?
—Você bebeu? Você está bem? —Eu finalmente comecei a pensar.
—Ravi.
—Eu estou um pouco preocupado agora. Maria?
—Como as baleias fazem bebê?
—Vamos fazer uma troca, você responde as minhas perguntas e eu as suas. As baleias não são tão incríveis nesse aspecto, são mamíferos então acho que você deve saber. —Eu disse rápido, me levantando para afastar qualquer resquício de sono do meu corpo e da minha voz. —Onde você está agora?
—Onde eu estou agora? Você tá vindo? —Ela pareceu acreditar nessa possibilidade.
—Eu gostaria de poder ir, mas eu estou em São Paulo, lembra? Por isso quero saber onde você está, se está bem. —Insisto, a voz dela foi ficando um pouco mais aguda.
—Está com raiva de mim?
—Não, eu não estou. Eu gostaria de estar aí pra poder te ajudar. —Respirei fundo mais uma vez. —Pra poder ser um ombro amigo pra você se apoiar agora e não precisar beber ou eu podia beber com você também, mas só não te deixar sozinha.
Existiam milhares de respostas a serem dadas depois do que eu falei, mas Maria escolheu rir. Soltar uma gargalhada na verdade, tão alta que me fez afastar o telefone.
—Maria?
—Você só tá dizendo isso, porque tá longe o suficiente para não precisar cumprir?— Sua voz era risonha.
—É claro que eu me importo. Por que eu não me importaria? —Me senti estranho, como se precisasse convencê-la. —Eu não preciso estar aí pra cumprir. Eu posso beber daqui se você quiser. Posso te apoiar daqui, por que é tão difícil confiar que eu me importe?
—Você não sabe muito para se importar, você precisa saber das coisas para gostar de alguém. Tá com sono, Ravi?
—Não, Maria, eu não estou com sono. Estou abrindo uma garrafa de vinho. —Lutei com o fecho do vinho, meu celular equilibrado no meu ombro. —E eu sei o suficiente para me importar com você, para gostar de você. O que está fazendo agora?
—Você bebe vinho? Eu não gosto, coça a garganta.
—Eu gosto da sensação. Por que não responde as minhas perguntas? —Bebi um gole. —Parece que tem medo de que eu me aproxime de você.
Ela ri novamente.
—Você tá em São Paulo, Ravi, não tem como chegar mais perto. Só de avião. —Ela fez uma pausa antes de completar com um grito: —E ônibus!
—Você tem certa razão. Mas sinto como se fugisse de mim sempre quando estou perto o suficiente para descobrir mais de você. É por isso que acha que eu não me importo?
—Eu não estou fugindo, eu tô parada. Mas minha cama está girando, acho.
—Pelo menos você está em casa, obrigado por isso. —Eu fiz o truque da respiração que meu pai me ensinou, para me acalmar e depois de alguns segundos, eu resolvi pegar leve. —Quanto você bebeu? Sua voz está engraçada.
—Ravi?
—Sim?
—Eu quero dormir.
—Isso é bom. Vai dormir mesmo?
—Acho que eu já estou dormindo. —Ri da voz dela.
—Senhorita Maria? —Ela resmungou. —Tenha bons sonhos então.
E eu não tive nenhuma resposta para isso.Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
Artes e capa por: LizGael e shyminb

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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...