Maria

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Papai parecia prestes a falar alguma coisa desde que saímos de casa. Ele batucava os dedos no volante de sua brasília azul, olhando pela janela e depois se virando para mim, abrindo a boca por alguns instantes antes de fechá-la. Normalmente eu era a pessoa que facilitava esses momentos, mas estava nervosa demais para me preocupar com as coisas que o preocupavam. Era a minha segunda entrevista em menos de duas semanas.
Revi as notas que estavam em minhas mãos, organizadas em lista em um papel colorido que tirei da minha antiga agenda, da época da faculdade. Eram informações sobre a Universidade onde eu faria a entrevista, apesar de não ter muitas coisas sobre a biblioteca deles, consegui algumas fotos e fiz uma lista dos principais objetivos educacionais da instituição e informações básicas sobre a história dela. Aquilo teria que servir de alguma forma.
—Maria?
Meu pai me chamou e demorou um pouco até que eu o olhasse, o carro estava parado em um semáforo e as janelas abertas traziam o ar quente dos motores para dentro.
—Não precisa ficar nervosa, você se preparou bem. —Ele continua e eu espero, sabendo que não era isso que ele queria falar a princípio. Demora um pouco, todo o tempo até estacionarmos em frente a universidade, mas ele finalmente toma coragem para perguntar: —Sua mãe disse alguma coisa?
Eu estava adiantada para a entrevista, então eu escorrego no banco com minha calça social e me viro para ele.
—Ela precisava falar comigo?
Meus pais estavam juntos há quase trinta anos. Eles moraram na mesma rua até a adolescência, mas nunca tinham realmente se aproximado até o dia em que minha mãe confundiu meu pai com o meu tio. Não era tão estranho que o relacionamento deles fosse regido por discussões, quando desde o primeiro contato houveram gritos histéricos envolvendo tarefas de casa vindos da minha mãe, e um olhar confuso vindo do meu pai. O que não se difere muito dos motivos atuais que os levam a brigar, nem as reações dos mesmos.
Mas essa foi a única vez que eles brigaram por causa da prosopagnosia da minha mãe — que por mais que seja mais leve que a minha, ainda a confundia quando ela estava com raiva. Depois disso eles arranjaram seus próprios motivos para discutir e eu aprendi cedo a me fazer de desentendida quando colocada no meio do fogo cruzado.
—Ela não disse nada?
—Sobre o quê? —Ele passou a mão na careca, sua pele negra ficava lustrosa nessa parte do corpo.
—Sobre mim, Maria.
—O senhor fez alguma coisa?
Ele passou novamente a mão na cabeça, dessa vez com mais força. Sr. Adilson e sra. Cleide não tinham personalidades muito parecidas, apesar dos confrontos constantes. Papai era mais centrado e calado que mamãe, que por sua vez era mais expressiva e direta. Se ele resolveu recorrer a mim, era porque ela ainda não estava disposta a falar com ele, o que não significava que não tinha exposto o motivo que a deixou chateada. E que também não significava que papai não tivesse pedido desculpas.
O relacionamento deles se tornava mais difícil na medida que tentavam facilitar as coisas, era tão complexo que fazia minha cabeça doer.
—Sua mãe não é fácil, você sabe o que eu quero dizer. —Apertou os lábios, parecendo repensar nas palavras. —Melhor ir logo, é bom chegar bem antes que todo mundo.
O olhei por alguns segundos, depois retirei o cinto de segurança e peguei minha bolsa do chão.
—Vocês estão juntos a tanto tempo. —Comentei com uma voz vaga, abrindo a porta do carro. —O senhor sabe o que precisa fazer. Me deseje boa sorte.
A universidade particular tomava todo um prédio de 12 andares, o estilo parecia um pouco frio demais, com paredes azuis que lembravam um hospital e uma longa bancada para a recepção, que antecedia as catracas que levavam aos elevadores. Só havia um homem no lugar, sentado em uma cadeira atrás do balcão, ele parecia distraído com um jogo de palavras.
—Bom dia.
—Bom dia.
—Como vai?
Ele me olhou por um momento e eu esperei, até perceber que se ele quisesse me responder, já teria o feito.
—Eu tenho uma entrevista às dez horas, falaram que seria no sexto andar.
—Sua identidade. —Passei o documento e depois de alguns minutos ele a devolveu junto com um crachá de visitantes. —Obrigada.
Passei pelas catracas e quando já estava dentro do elevador, fechei os olhos e fiz uma pequena prece. O desemprego te esclarece algumas coisas em relação ao seu próprio modo de agir, pensar e desejar algumas coisas. Quando decidi me formar em biblioteconomia, eu tinha um ligeiro conhecimento de que não era uma área onde você facilmente consegue seu primeiro milhão, mas não estava claro que seria difícil conseguir um salário mínimo com, se houvesse a possibilidade, plano de saúde e VR. E também não estava claro que depois de passar quase dois anos desempregada, eu ficaria feliz com essas condições.
E a minha escolha de carreira não era a principal culpada do meu constante declínio de exigências para um emprego. Eu era.
No sexto andar do prédio fui recebida com o vazio quando a porta do elevador se abriu, precisei escolher um dos lados do corredor e segui por ele até encontrar algum sinal de vida humana. As vozes me alcançaram primeiro, uma fala rápida e risos altos que talvez só fossem possíveis por conta do período de férias.
A conversa vinha de uma sala que estava com a porta fechada, a janelinha de vidro fosco deixando a luz do lado de dentro refletir. Eu não sabia se esperava ali mesmo até que alguém saísse ou se batia e me apresentava, ainda estava dez minutos adiantada e não queria interromper o que quer que eles estivessem fazendo. Mas qual era o ponto de chegar cedo se ninguém via que você chegou cedo?
Esse pensamento me fez dar duas batidinhas na porta, que cortaram alguma coisa que estava sendo dita do lado de dentro. Demorou um pouco para que eu ouvisse um “entre” e eu tentei sorrir antes de abrir a porta. Do lado de dentro estavam duas mulheres loiras, sendo que uma delas usava uma blusa rosa berrante, e um homem branco calvo. Era um escritório simples, com divisórias simples e pilhas de papéis em cima das mesas.
—Bom dia. —Sorri um pouco mais largo e eles responderam em uníssono, me fazendo reconhecer um tom simpático que fez com que meus ombros perdessem um pouco da rigidez. —Eu vim para a entrevista de emprego. Para a biblioteca. —Apontei para fora, mesmo não tendo a mínima ideia de onde ficava a biblioteca. —É com a srta. Marta. —Completei. Eu havia feito um workshop online sobre convivência social, e havia algo sobre usar seu tempo para dizer tudo o que precisa, mas de forma pausada e casual. A mulher de terninho verde que ficava de um lado para o outro em frente a um fundo branco, garantiu que isso fazia com que as pessoas te vissem como alguém confiante.
—Srta. Marta? —Me virei para a mulher de blusa rosa berrante. —Você precisa ir para o RH, é só voltar por esse corredor até encontrar uma porta grande, cor de gelo.
—Aquilo é cinza. —O homem a interrompeu. —E a Marta acabou de sair para comprar café.
—Tudo bem ela não estar lá na hora, mas a menina precisa estar. —Rosa berrante contrapõe, sendo apoiada com um aceno pela outra loira, que havia puxado uma caneca com estampa de estrelinhas e tomava quieta o seu conteúdo. —Tem uma plaquinha com “Recursos Humanos” escrito, não tem erro.
—Obrigada. —Eles responderam a isso também, me desejando boa sorte. E eu sai da sala, ouvindo os risos e as conversas voltando assim que fechei a porta.
Eu realmente queria aquele emprego.
Haviam os motivos óbvios, claro. Em determinada época da nossa vida passa a ser vergonhoso pedir dinheiro emprestado para os pais, mesmo que para necessidades básicas. E mesmo que eles nunca tenham reclamado sobre isso, eu não conseguia dormir tranquila desde que meu contrato acabou no meu último estágio, onde eu esperava ser efetivada para fazer meu melhor até que a aposentadoria chegasse.
E não era como se eu não tivesse me esforçado para que isso acontecesse. Cumpria todos os horários, mantinha uma boa alimentação para nunca ficar doente, não entrava em situações desnecessárias com meus colegas de trabalho e respeitava meus superiores. Acho que foi por isso que meu chefe de setor sentiu a necessidade de explicar o porquê de estar me dispensando depois de dois anos de trabalho duro alternado por boas notas na faculdade, ou talvez tenha sido a minha cara de choro que o impulsionou a me servir um pouco de água e começar a dizer com uma fala calma e controlada, que eu não permaneceria no trabalho, porque eu não conseguia manter um clima confortável com os outros membros da instituição.
Eu não consegui fingir que estava ofendida, sabia o que ele queria dizer.
Era desconcertante ter melhores amigos se você não consegue reconhecê-los quando eles te abordam no shopping. Eu não podia pedir que alguém mantivesse sempre a mesma cor, corte e penteado de cabelo, não mudasse muito o seu estilo ou não tivesse uma gripe que prejudicasse sua voz. Isso é coisa demais para se pedir, um esforço que na minha opinião não valeria a pena, porque talvez eu não fosse o melhor tipo de amiga de qualquer forma.
Eu não sabia se me daria ao trabalho se estivesse no lugar deles, então qual era o sentido de começar esse tipo de coisa?
Por mais que a ideia de ter colegas no trabalho seja interessante para a maioria das pessoas, ela era para mim o principal problema. Com toda certeza eu não diria sobre minha condição para um possível empregador, a menos que isso fosse investigado, eu certamente não falaria sobre. Assim como tentaria o máximo possível criar laços com os meus novos colegas, sendo simpática até o ponto de não ser estranho se eles me ignorarem fora do nosso local de trabalho. Eu ainda não sabia as medidas certas para que isso acontecesse, mas usaria o conceito de tentativa e erro. No primeiro momento, o foco era conseguir o emprego.
Do lado de fora da sala do RH, eu comecei uma fila que recebeu mais nove pessoas. Todas mulheres, vestidas como eu, que felizmente não sentiram necessidade de começar um diálogo que se estendesse para além do “olá, bom dia”. Srta. Marta chegou quinze minutos atrasada, com um copo de café em uma mão e ainda mastigando algo. Ela passou por nós e abriu a sala, levantando o dedo indicador como se pedisse por um minuto.
Respirei fundo e tentei repassar as informações que havia levantado, repetindo minha apresentação na minha cabeça. Oi, meu nome é Maria Martins, eu tenho vinte e seis anos, me graduei em 2017 na UFRj em biblioteconomia, sou solteira, não tenho filhos.
Preciso desse emprego.
Preciso desse emprego, de verdade, preciso muito.
Por favor, me dê esse emprego.
—Quem é a primeira? —Srta. Marta surgiu na porta com um sorriso. —É você? —Apontou para mim e eu acenei, seguindo sua figura pequena para dentro da sala.
O lugar me deixou um pouco claustrofóbica, com as janelas fechadas e a luz amarela, o espaço pequeno era composto apenas por três mesas médias com poltronas pretas fazendo par e duas cadeiras simples em frente a elas. Mas só havia a srta. Marta e eu no espaço, as outras mesas permaneceram intocadas, então eu não entendia a sensação de estar sendo observada, que não vinha da mulher a minha frente, que parecia entretida demais com seu cafezinho.
Respeitei seu momento, entendendo como era difícil fazer qualquer coisa na parte da manhã.
—Então, quem é você? —Fui rápida para responder à pergunta, que veio entre casuais goles de sua bebida.
—Eu sou Maria Martins. —Tento usar um tom sério e ela apenas acenou, mexendo em uma pequena pilha que estava em sua mesa e puxando o que parecia ser o meu currículo. —Eu tenho vinte e seis anos, sou formada pela UFRj em biblioteconomia...
—Sim, está bem aqui. —Ela olhou para o papel, mas tive a impressão de que não o estava realmente lendo. —Porque ficou desempregada durante dois anos? —Eu meio que esperava por essa pergunta, e no tempo que estive ensaiando ao redor dela, não consegui decidir se dizia a verdade ou mentia. Opto por ficar no meio termo.
—Por conta de uma série de fatores, nem tudo estava nas minhas mãos. —Não sei se sinto completo alívio quando ela concorda com a cabeça. —Mas usei esse tempo para fazer minha pós, me aperfeiçoar na área. Gosto muito do que eu faço.
Ela voltou a ler o meu currículo, não necessariamente interessada, mas isso podia se estender para todas as meninas do lado de fora. Talvez o problema não fosse eu. Comecei a ficar nervosa por não poder afirmar ao certo, ajeitando minha blusa branca de botões e passando a mão discretamente no meu cabelo, meus cachos estando firmemente presos em um coque.
—Pedimos para você anexar uma carta de recomendação. —Ela voltou para mim. As pessoas podem ficar um pouco confusas quando usam o termo “cegueira facial” para descrever a prosopagnosia.
A verdade era que eu conseguia ver os olhos, a boca e as bochechas da srta. Marta, estavam ali, claramente. Eu só não conseguia formar um rosto com essas informações, por isso se eu a encontrasse em qualquer outro lugar, não a reconheceria. Mas já conseguia reconhecer algumas coisas nela, me lembrava de ter visto o mesmo no rosto das outras pessoas que me entrevistaram para suprir uma possível vaga de emprego.
—Mas era algo opcional.
—Sim, é verdade —E não disse mais nada sobre o assunto.

Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
Capa e artes por: shyminb e LizGael

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