“A vitória do espírito origina-se da compreensão de que a vida não é o corpo, da mesma forma que a água não é o copo que a contém.”
Papa me disse isso quando me pegou chorando pela morte da minha mãe. Eu tinha seis anos, não entendi uma palavra, mas ele tornou a me dizer ano após ano, sempre que o aniversário dela chegava, ou nos pegávamos com saudade demais, até eu conseguir entender. Papa sempre foi muito sábio e forte e tudo o que eu queria era ter um pouco disso.
Depois que eu desliguei com a Maria não consegui dormir e tio Indra apareceu preocupado querendo saber o que eu fazia bebendo no meio da noite, eu não tinha porque compartilhar, então desviei o assunto e acabamos embarcando numa conversa sobre o meu pai. E enquanto ele me atualizava sobre os novos remédios e como foi a última consulta, me explicando sobre o novo estágio que o papa se encontrava, tudo o que eu conseguia pensar era que nada daquilo era justo. Papa tinha uma vida brilhante antes do Alzheimer, mesmo com todos os problemas, ele estava sempre de cabeça erguida e não costumava reclamar, pelo menos não na frente de ninguém. Ele ainda era novo e estava se esvaindo de pouco em pouco.
—Está ouvindo? —Tio Indra chamou minha atenção.
—Estou. —Balancei a cabeça. —Eu posso fechar melhor meu horário pra não precisar trabalhar no sábado e ajudar um pouco mais. Ou posso...
—Não. —Ele me interrompeu. —Eu não quero que faça isso, nem seu pai. —Fez uma pausa, mantendo o olhar sobre o meu. —Surya está vindo pro Brasil, ela vai ajudar sua tia Shanti a cuidar do restaurante, elas já estavam me deixando louco com esse assunto. —Balançou a mão ao redor da cabeça, seu sotaque forte deu um tom leve a frase. —Eu vou passar a cuidar do seu pai junto com a Soraia, ele é meu irmão mais velho e eu posso fazer isso graças a toda a ajuda que ele me deu quando precisei.
—Ele é o meu pai, tio. Se você não estivesse aqui, eu teria que fazer isso sozinho.
—Mas eu estou aqui, então não, você não precisa fazer sozinho. Não é como se eu estivesse levando seu pai para a Índia, ele estará aqui, ou na minha casa há três ruas daqui. —Ele disse como se fosse óbvio. —Eu sei que vai nos ajudar com o que for preciso, e é por isso que estou tomando essa responsabilidade.
—Aposto que a prima Surya está cheia de ideias para o restaurante. —Desviei o assunto, apenas porque não queria mais discutir sobre.
Tio Indra reclamou sobre como elas estavam animadas para ajudar e cheias de ideias para a decoração e novos pratos vindos da família da tia Shanti, passamos um tempo falando sobre isso e aparentemente a máscara que eu vesti foi o suficiente para não deixá-lo preocupado, mas mais uma vez o sentimento de impotência estava me dominando e eu me sentia como uma criança de novo.
Não pensar sobre o Alzheimer não fazia ele desaparecer e sempre quando ele avançava mais um passo, eu voltava dois, três, milhares de passos, porque eu tinha medo. Gostava sim de acreditar que a vida era muito mais que tudo isso e que meu pai tinha vívido o suficiente para valer a pena e para que mesmo que sua mente não se lembrasse, o seu coração e alma o fizessem, mas era difícil pensar sobre isso quando em alguns momentos ele parecia tão frágil e eu o conhecia o bastante para saber que isso também o machucava.
—Filho? —Papa apareceu na porta do meu quarto.
—Precisa de alguma coisa, papa?
Ele me olhou de cima a baixo e se esgueirou vagarosamente pelo quarto, desviando o olhar ao redor e suspirando. Parecia cansado, era sempre assim quando voltava do médico.
—Eu preciso de você agora. —Ele estendeu o braço, e eu me sentei ao seu lado. —Ouvi sua conversa com o tio Indra agora pouco.
—Papa. —Ele me interrompeu.
—É estranho, às vezes eu só não consigo entender como o tempo passa tão rápido, porque eu acordo esperando que você retorne da escola, mas você está com os cabelos grandes e essa barba por fazer, com um jaleco pendurado na bolsa, um homem feito. E então em algum momento me dou conta de que é o Alzheimer. —Ele ainda não tinha tocado nesse assunto comigo, não assim. —Às vezes eu percebo e às vezes não, nos últimos tempos algumas coisas simples não são mais tão simples e você sabe o quanto é difícil pra mim admitir e pedir ajuda, mas está tudo bem, Ravi. Eu e o seu tio vamos dar conta disso, e quando ficar difícil, eu prometo vir até você, só que eu preciso que você viva, porque eu também prometi a sua mãe que iria cuidar de você. —Ele segurou minha mão. —Eu não vou esquecer você, filho.
Minha garganta estava coçando, meus olhos ardendo e eu não queria chorar, por isso fiquei quieto. Eu pensei que tinha que ser forte por ele, porque em todas as vezes em que eu precisei, ele foi forte por mim, mas não era mais sobre mim. Papa me abraçou e eu me dei conta do quão idiota eu estava sendo o tempo todo, fugindo do nome dos problemas e somente empurrando tudo até então.
—Me perdoa. —Eu soltei depois de um tempo, quando finalmente me permiti chorar. —Eu só, papa, eu só não quero te perder, não quero chegar um dia do trabalho e te perder.
—Você não vai. A minha memória pode estar quebrada, o meu corpo pode estar quebrado, meu filho. Mas eu vou sempre ter você e você sempre vai me ter. —Ele limpou minhas lágrimas. —Garoto, eu já te ensinei que não é necessário lembrar do rosto de alguém para ter uma pessoa. Isso vale para o meu caso também. Não estou dizendo que vai ser fácil, mas você não vai me perder, não por enquanto, então só faça sua vida, viva como você tem vontade de viver e guarde essas lágrimas para a nossa despedida de verdade, que um dia vai acontecer, mas não hoje. —Ele suspirou e eu voltei a abraçá-lo. —Isso tudo é tão difícil, então relaxe enquanto o mar está quieto, para quando eu precisar que você assuma o controle, você possa fazer sem medo. Chore de raiva se precisar, reclame e xingue o quanto quiser, acredite eu faço isso quando não aguento mais, faz até bem.
Ri da maneira como ele falou, me afastei o suficiente para encará-lo, seu rosto ainda era uma incógnita familiar, a flor-de-lis pendendo de cima até o queixo, em tons de azul forte e ao mesmo tempo suaves.
—Isso é uma droga. —Eu disse e ele me acompanhou, ficamos um bom tempo xingando juntos, foi uma madrugada libertadora, sem dúvida.
E quando me deitei, tudo se acalmou e só restou o silêncio, eu me lembrei de Maria. Foi assim que ela se sentiu naquele dia? Me perguntei.
Encarei a hora no celular e tentei imaginar o que ela estaria fazendo, mas concluí que ainda não tinha informações suficientes para acertar. Reli a lista que tinha feito sobre ela várias vezes, até pegar no sono e ter algumas horas de descanso. Acordei às seis com meu despertador e mesmo que tenha dormido pouco foi um sono bom o bastante para recuperar minhas energias. Saí com a mente vazia, como se ainda estivesse anestesiado, mas quando estava no segundo ônibus a caminho do zoológico, a chuva me pegou e sentado na janela acabei sendo atingido pela realidade de pouco em pouco.
Dentre os vários pensamentos que tive, eu pesquei Maria, mais uma vez, e me abracei a ela, porque por mais que ainda me sentisse impotente sobre ajudá-la, eu gostava de procurar detalhes em nossas interações que me dissessem mais sobre ela. Isso me relaxava e eu estava tentando seguir o conselho do papa.
“Bom dia, como você está?” eu mandei para ela, antes de caçar meu guarda-chuva na bolsa.
Desci do ônibus e segui o caminho de sempre sendo atingido por um vento chato e molhado. O dia não estava tão mais animado que eu, não pude reclamar de qualquer forma, até porque ele foi agitado pela quantidade de coisas que eu tive a fazer. Nem mesmo no almoço eu tive como parar, duas equipes inteiras também estavam no refeitório, discutindo novas dietas para as onças que estavam reagindo mal a carne bovina, me senti na faculdade de novo, debatendo algum estudo de caso de quebrar a cabeça. Entre um argumento e uma mastigada, eu xeretei meu celular, buscando por alguma mensagem de Maria, que não veio, disse a mim mesmo que ela deveria estar tão ocupada quanto eu, e apenas continuei meus afazeres. Querendo ou não eu precisei me manter em um ritmo quase que frenético para poder completar tudo até o final do expediente, eu sentia os olhos do Dr. Camilo em mim, observando cada movimento meu, como um predador.
Havia boatos de que alguns estagiários e novatos não passariam daquele semestre, seriam transferidos ou simplesmente dispensados e eu realmente não queria estar na lista dos que iriam se despedir, eu entregava meu melhor dia após dia, porque obviamente ele estava testando a todo mundo para escolher os melhores e por isso quando ele me pediu para ficar uma hora a mais, o ajudando com o relatório da Faustine e a escolher um dos novos métodos para as onças, eu aceitei.
Chequei as mensagens mais uma vez, duas de tio Indra, uma de Gabriel, e nada de Maria. Respondi o que precisava e mandei mais uma mensagem para ela: “Oi?”.
Depois disso me concentrei no trabalho, Dr. Camilo e eu acabamos tomando mais tempo do que previsto, já que não ficamos apenas no relatório e no novo cardápio. Ele estava me contando sobre a viagem que faria ao Rio para ajudar nos preparativos para receber os animais no novo parque, me mostrou a ficha deles e até me ensinou algumas coisas novas.
—Não vou ficar muito tempo, essa viagem vai ser apenas para reconhecer o território, vamos dizer. —Ele girou em sua cadeira. —Estava pensando em montar uma equipe para me ajudar depois que eu voltar, você foi muito bem no último treinamento e tem se dedicado bastante nesse tempo que está aqui, sei que tem o seu pai, mas com essa equipe eu posso otimizar o tempo no Rio em semanas, já que não precisarei ensinar os veterinários de lá. Estaria interessado em participar? —Ele tinha uma postura relaxada, apesar de ser meu chefe a minha frente, a conversa estava num tom informal, por assim dizer.
—Bem, como não vai ser agora, eu poderia usar esse tempo para me preparar. —Eu fui sincero. —Vai ser muito bom poder ajudar todos esses animais e ainda aprender tanto. Tem alguma data prevista?
—Por enquanto, agendado eu só tenho a minha primeira viagem. Será logo na próxima semana. E ainda vou montar minha equipe, que vai precisar passar por mais um treinamento rápido aqui, então não se preocupe com isso por agora. —Ele explicou. —Só comentei, porque pelos resultados que veio apresentando você parece ser uma das escolhas certas e eu precisava saber se estaria interessado.
—Tudo bem. E quanto tempo mais ou menos passaríamos lá?
Eu procurei me informar de tudo que pude, claro que eu queria ir, além de me dar uma ótima experiência significava que eu iria manter meu emprego. Mas eu ainda precisava ter tudo planejado, porque nos últimos dois anos eu não tinha deixado São Paulo, era sim por causa do papa e apesar da conversa da noite anterior, eu estaria longe para caso algo acontecesse, precisaria ter certeza de que tio Indra poderia cuidar de tudo nesse tempo que estivesse fora.
Fiz o caminho para casa pensando sobre isso, tanto que nem peguei no celular direito. Jantei com papa que estava aéreo mais uma vez, o ajudei com os remédios e o entretive até que pegasse no sono, o que foi difícil, mas me fez pesar tudo isso enquanto pensava sobre a proposta do Dr. Camilo.
Maria não havia me respondido até quando fui me deitar. Mil coisas estavam queimando na minha cabeça, talvez ela estivesse com receio pela ligação, talvez estivesse com mais problemas, ou só me ignorando, porque sempre quando parecíamos nos aproximar ela fugia de mim. Todos os “talvez” me deixaram ainda mais melancólico, eu queria poder falar com ela sobre isso, quer dizer, se eu fosse para o Rio, eu poderia conhecê-la, mas ela nem sequer respondia minhas mensagens...
“Só me diga se está bem. Eu me importo, Maria.” Digitei e apaguei algumas vezes, até enviar, porque eu preferia fazer do que ficar me perguntando o porquê de não ter tido coragem.
Mas era quase meia noite, eu não estava esperançoso de que ela responderia, e eu estava com sono e mesmo que não quisesse eu estava frustrado, porque eu realmente me importava e ela parecia não acreditar ou pelo menos ignorar isso.
Então eu só dormi e deixei para traçar meus planos sobre a proposta e a Maria para o dia seguinte, porque papa também me ensinou que as palavras precisam valer mais que o silêncio, seja as ditas a outras pessoas, ou a mim mesmo.Escrito por: LuaInAHoodie e Marveril
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Posso Ver Você
RomanceRavi era a mistura da Índia com o Brasil. Vivendo em São Paulo, ele se formou para ser um bom médico veterinário, ajudava no restaurante da sua família e tinha hábitos saudáveis, além de um otimismo refrescante. Maria esteve desempregada por dois an...