Local: Tayangi, nos arredores de Huosh
Ano: 628
O sobressalto dos pássaros que, esfomeados, bicavam o parapeito da sua janela, acordou-o do seu profundo sono. Queriam, com certeza, os restos do seu pequeno-almoço, que diariamente partilhava com eles. A fraca luz que se esgueirava pela frincha das suas portadas, iluminava timidamente um até então escuro quarto, dando a entender a precoce hora da madrugada. Contrariando a vontade de continuar enrolado nos quentes e confortáveis lençóis, que noite após noite lhe davam guarida, levantou-se lentamente pronto para começar mais um dia. E que dia. Pensou. Petiscou uns restos de pão que encontrou perdidos, certamente de há vários dias atrás, enquanto moía freneticamente um bocado de café.
Abriu as portadas da janela, sendo acolhido calorosamente pelos seus amigos voadores, que rejubilavam com a sua presença. Deu-lhes um bocado que sobrou do seu recesso pão, aproveitando o momento para acariciar as suas suaves penas. Os sons de entusiasmo das aves, foram envolvidos por todos os sons que marcavam mais um início de dia na aldeia. As crianças corriam e gritavam pelas ruas, saltando nas poças de água que repousavam nos trilhos deixados pelas carroças de bois dos mercadores, que horas antes tinham partido para a capital. Já os seus pais, barafustavam, de punho em riste, para estes se comportarem. Aquela paisagem, pintada na tela da sua janela, de pequenas casas rodeadas por verdejantes árvores, faziam o seu coração bater mais depressa. Viveu ali desde que deu o primeiro choro neste mundo. Muitos outros choros e alegrias se seguiram, durante o caudal da sua vida passada naqueles quatro recantos da aldeia. Reis e Imperadores iam e vinham, moldando tudo à sua passagem. Cidades inteiras eram dizimadas e construídas novamente, tijolo após tijolo, ganhando a cada mudança uma nova identidade. Tudo menos aquela aldeia. Um pequeno ponto esquecido num empoeirado mapa que resistia orgulhosamente às areias do tempo.
O sino da igreja, imponente e autoritário, capaz de ser ouvido a quilómetros de distância, marcou o fim de mais uma hora, preenchendo a paisagem com criaturas voadoras, que em terror, esvoaçavam quase sem direção. Tenho que me despachar. Pensou enquanto atabalhoadamente vestia a desconfortável farpela do costume. Antes de sair, pegou no esfiapado casaco que durante tantos anos chamou de seu, colocando-o num braço, enquanto que no outro, levava a merenda que tinha preparado na noite anterior. A fome que sentia, desaparecia sempre que detetava o odor a azedo misturado com o bolor do pão que emanava da sacola.
A temperatura abafada de um solarengo dia bateu em si, dando o mote perfeito para mais um dia de trabalho. Ao fundo da rua, de mochila ao colo e chapéu de pescador na cabeça, aguardava o seu fiel amigo. À medida que se aproximava dele, olhou uma última vez para trás para se despedir dos seus companheiros que continuavam no parapeito, joviais e brincalhões, bicando as migalhas restantes no que parecia um verdadeiro jogo de astúcia. Até logo, amigos.
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O Nascer da Rosa Branca
FantasyDuas décadas passaram desde a temível Guerra das Rosas Negras. O mundo, frágil e fragmentado, resiste por um fio. A esperança tem muitos nomes e muitos rostos. Pessoas comuns, mas extraordinárias, que lutam por um ideal utópico. O bem e o mal são, m...