Prólogo

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Europa, 683 d.C

        Céus, como este lugar cheira mal! – pensei, assim que abri a porta e adentrei ao cômodo frio e nitidamente mal cuidado, que o dono dessa pocilga chama orgulhosamente de quarto. Ao receber-me em seu estabelecimento, o homem de formas roliças, estatura baixa e barba farta, nem ao menos quis saber meu nome. Desde que pagasse em adiantado o valor do aluguel pelo quarto, o que fiz de imediato, pouco lhe importava a identidade de seu mais novo hóspede. “Melhor assim” – constatei, enquanto cerrava a porta atrás de mim, abafando assim o som das vozes das dezenas de homens que se encontram no primeiro nível da construção, em um pequeno salão. Sentados em maciços bancos de madeira dispostos pelo local, eles cantarolam, enquanto erguem suas canecas, agitando-as no ar, ou conversam animadamente, dizendo impropérios uns aos outros. Aparentemente, todos são viajantes e encontram-se longes de suas casas e famílias, sendo a bebida e as mulheres instaladas em seus colos, lhes oferecendo o aconchego de seus corpos femininos, suas únicas fontes de alegria em uma noite fria como a de hoje.

        Erguendo a pequena lamparina de barro que trazia em uma das mãos, levei-a de um lado a outro e sua chama cintilou, iluminando o aposento, dissipando parte da escuridão que o envolve. Enquanto o pequeno foco de luz tremula e produz nas paredes sombras densas e irregulares, olhei ao redor, fazendo um rápido reconhecimento do local. Existe uma estreita janela ao lado direito. De móveis há apenas uma cama ao centro, arrumada com um cobertor surrado, e uma solitária cadeira no canto esquerdo. Infelizmente, este foi o único lugar, em quilômetros, que possuía um quarto disponível e terá que servir para passar a noite de hoje. Depois de quase três dias sem me alimentar direito e passando a maior parte do tempo correndo, uma noite de descanso, seja no canto que for, será de grande valia.

        Adentrei mais o cômodo e ao ouvir o som das grossas gotas de chuva golpeando o vidro da janela, caminhei até ela e me detive a sua frente, contemplando a tempestade que há dias se abatera pela região. A pequena vila está envolta em lama e escuridão, e só se consegue distinguir as pequenas ruelas, casas ou qualquer outra forma, quando algum relâmpago irrompe pelas densas nuvens e ilumina o céu. Noites assim sempre me faziam lembrar a satisfação que era estar em casa, protegido da chuva e do frio, ouvindo meu pai contar histórias sobre nossos antepassados, enquanto minha mãe preparava algo saboroso que não só nutria nossos corpos, mas também aquecia nossos corações. Puxei uma respiração profunda e fechei os olhos, tentando, em vão, afastar a intensa dor que me consumia, dia após dia, ao recordar de tais fatos. Longas noites em claro se seguiram até que o sono, quando veio, tornou-se meu único refúgio para aplacar tal dor. E era justamente disto que eu precisava.

        Após observar um último relâmpago iluminar o céu, virei-me e fui até à estreita cama, que com certeza não irá abrigar-me confortavelmente, mas que repentinamente tornou-se demasiada convidativa, tamanho era o meu cansaço. Largando minha bolsa junto ao pé desta, me sentei em sua beirada, que rangeu ao receber meu peso, e pousei a lamparina no chão, próxima à cabeceira, sentindo todos os meus músculos doerem ao executar o movimento. Eles reclamaram ainda mais quando me curvei para retirar minhas botas. Todo o meu corpo jaz dolorido e traz um número considerável de feridas e manchas roxas, que felizmente ainda são possíveis de encobrir por meio de vestimentas. O mesmo não se pode dizer do corte que trago no lábio e testa e que chamaram consideravelmente a atenção do dono do presente local. Todos os sinais de dores, porém, não me aborrecem. Cada vez que minhas juntas latejam, elas me lembram de que sou humano.

        Antes isto, a ser como eles.

        Além de reafirmarem minha natureza, tais sinais dolorosos também me recordavam do êxito que vinha alcançando em minhas caçadas. Na última, não fora diferente. Há certa distância daqui, me encontrara com um noturno e me enredara em uma luta com o maldito. Um dos mais difíceis de aniquilar até hoje. Ele lutou e tentou incansavelmente me morder, até que finalmente cravei com prazer uma estaca em seu coração já morto.

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