Capítulo XXII

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— Você sabe como os pais de Danilo morreram, certo?

— Acidente de carro.

— Sim, na época todos nós morávamos em Salvador. Nossos pais eram muito próximos graças às nossas mães, que eram irmãs, então faziam muitas coisas juntos, como viagens. Eu tinha seis anos e o Danilo oito, ficamos com os avós paternos dele quando nossos pais resolveram fazer essa viagem, já que nossos avós maternos já haviam falecido e meus avós paternos moravam na zona rural de Pojuca. — ela suspirou. — Quando recebemos a notícia... não sei se entendi completamente na época. A avó de Danilo tentou nos explicar da melhor forma que pôde, enquanto chorava e nos abraçava. Dormi com Danilo naquela noite, abraçada a seu corpo franzino. Essa memória nunca vai sair da minha cabeça... ele não havia chorado até então, mas senti suas lágrimas de criança quando alcança uma compreensão inestimável caírem enquanto achava que eu já havia pegado no sono.

Victor a abraçou mais forte enquanto afagava seu braço desnudo.

— Depois... tudo aconteceu rápido demais. Eu não queria me separar de Danilo, estivemos juntos desde que me entendo por gente, mas essa decisão cabia aos adultos. Meus avós paternos não deixaram que eu ficasse em Salvador, com os avós de Danilo, disseram que não era certo, porque não tínhamos laços de sangue. Então me levaram para o interior com eles, para Pojuca, depois do funeral. Acho que foi nesse momento que comecei a compreender que as coisas seriam diferentes. — ela riu, sem humor. — É engraçado como as crianças visualizam as coisas... eu lembro de tentar contar as árvores que via pela janela do ônibus naquela viagem longa demais, tentando calcular a quantas árvores de distância estaria do meu primo. Fiquei tão brava comigo mesma por ter adormecido em algum momento e perdido a conta. Fiz bico todo o restante do caminho quando acordei e me dei conta disso.

"No começo, não foi tão ruim. O lugar era calmo e havia tanto espaço para correr e animais por todo o lado, eu me distraía. Mas as vezes parecia que percebia que meus pais não existiam mais e começava a chorar estridentemente. Minha avó era mais cuidadosa comigo, mas meu avô não suportava quando isso acontecia. Mesmo naquela época eu já tinha medo dele. Não gostava de ficar perto dele."

Victor estremeceu, sua mente criando uma série de cenários que estavam longe de serem agradáveis. Queria falar alguma coisa, fazer alguma coisa... mas se conteve e deixou que ela continuasse.

— Minha avó faleceu um ano e meio depois. E foi quando meu pesadelo começou. Nem havia completado meus oito anos ainda e já me sentia completamente sozinha e aterrorizada, mesmo que a morte começasse a fazer mais sentido pra mim. O que me assustava mais era o que poderia acontecer comigo depois dela... quando meus pais morreram precisei ser levada para esse novo lugar, para viver com parentes que tinha pouco contato, pouca familiaridade, e depois, a única pessoa que ainda conseguia me deixar confortável e acalentada partiu também. Mesmo tão nova eu pensava sobre como seria minha vida a partir daquele momento.

"Evitava falar muito na presença do meu avô, para não irritá-lo. Ainda era muito inocente para perceber que deveria manter distância também, mas eu era uma criança carente de afeto e esperava que ele me desse o que eu precisava. Felizmente, não demorou muito para eu começar a entender que nossas ideias de afeto e carinho eram bem diferentes."

O corpo de Victor retesou e exigiu muito esforço dele não soltar um palavrão. Começava a perceber o quão difícil era apenas ouvir, ainda mais ouvir tudo aquilo.

— Ir pra escola era um momento de alívio inexplicável, eu amava estudar e brincar no intervalo com outras crianças e esquecer que precisava voltar para casa em algum momento. Tentei passar mais tempo com as crianças que moravam próximas a mim quando voltava da escola, voltando apenas à noite para casa e indo diretamente para meu quarto. Mas ele percebeu. Passou a me proibir de sair de casa e brincar com elas, e depois de um tempo nem mesmo ficar no meu quarto era suficiente. — Victor sentiu o corpo de Maia começar a tremer levemente e a apertou mais forte em seus braços. — No início tudo era muito sútil, era a forma como ele me olhava, o jeito que falava comigo e que tentava a todo custo me tocar de alguma forma, dizendo que uma criança precisava de carinho e cuidados.

"Quando fiz dez anos as coisas ficaram piores. Eu tinha medo de dormir à noite, porque podia ouvir seus passos se aproximando da porta do meu quarto, abrindo-a e me observando em pé, ao lado da cama. — deitada no peito de Victor, ele pôde sentir as lágrimas de Maia atingirem sua pele. Se ela levantasse o rosto, veria que também haviam lágrimas nos olhos dele. — Meu único desejo era fugir e cheguei a tentar, mas não havia para onde ir e ele me encontrou com facilidade, a surra que levei nunca sairá da minha memória, aquele cipó ainda assombra meus pesadelos."

"Eu pensava que não poderia piorar, mas sempre pode. Aos doze, meu corpo explodiu, ganhando mais forma do que eu poderia desejar. Comecei a odiá-lo, meu maldito corpo não estava ajudando a me manter no escuro, a me manter invisível. Não só ganhei minha primeira menstruação, mas também seios maiores, um quadril largo... e olhares mais lascivos. As roupas não eram suficientes para me esconder. Ainda não era capaz naquela época de entender tudo, de entender que não era minha culpa, que eu era a vítima."

— Não era sua culpa, Maia. — Victor não resistiu, não conseguiu se manter em silêncio. — Pelo amor de Deus. Aquele homem... aquele cretino... era um doente. Nunca mais pense uma coisa dessas.

— Eu não penso, não mais. Não se preocupe, Vito, já trilhei essa longa estrada há muito tempo com ajuda psicológica profissional. — suspirou. — Mas na época... eu vivia um inferno na Terra, desejava todos os dias que a morte me levasse também ou o levasse. Não tenho vergonha de dizer que desejei inúmeras vezes ser eu a responsável por isso. Enquanto crescia, quando não podia me refugiar em livros, me trancava na minha própria cabeça criando imagens, cenários, cenas... em que tirava minha vida ou tirava a dele. Apesar de assustador, era reconfortante. Era como se eu dissesse para mim mesma que ainda havia algo a ser feito caso eu não suportasse mais.

— Meu Deus, Maia...

— Meu Deus, Maia

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