Capítulo IX.

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Capítulo IX. - A Epopeia de Gilgamesh

- Mamãe! Mamãe! Não! - O sangue pincelou a areia do deserto. Caída, ao lado dos respingos, uma mulher de olhos vítreos encarava o nada, com a garganta vertendo vermelho. A criança, saída repentinamente do choque, fitou os dois responsáveis, sentindo as bochechas queimarem em ódio - Seus... Malditos!

O garoto de cabelo verde tentou um soco contra um dos súditos de Anu, acertando apenas sua vestimenta, autografada com um dingir. Era a marca de Anu, uma forma dele expressar sua "divindade".

Não sentiu o primeiro ou o segundo soco chegando, apenas viu-se deitado no chão, após uma miríade de flashes contundentes, a areia empanando o cadáver de sua mãe. Uma mulher tão forte, caçadora de bugglers, ex-policial espacial. Só saberia anos depois daquilo que os sacerdotes de Anu nunca teriam força suficiente para tal feito.

Olhou pra cima, num lapso de memória, e se viu ameaçado pela mesma lâmina que tirou a vida de sua mãe. Sentia o rosto formigando, e o sangue entrando em seus pulmões quando o segundo súditos se aproximou do que o ameaçava com o bastião.

- Acalme-se. Talvez, ele seja útil.

- Útil? Útil pra quê? - Perguntou. Gilgamesh não conseguia diferenciar seus rostos, já que o segundo sol de Corsária sempre interferia nisso. - Ele é só um mendigo do deserto, assim como a mãe. Não vai fazer diferença.

- Por isso mesmo devemos poupá-lo. O Conselho não vai fazer perguntas, nem vai se importar se usássemos um órfão como membro dos Anunnaki.

- Você... Você enlouqueceu? Se levarmos ele pros Anunnaki, o que Anu-Emi vai dizer?

O outro se virou pra Gilgamesh, que arfava ruidosamente.

- Anu vai nos agraciar. Vidas são vidas, e por mais insignificantes que sejam, precisamos de vidas para nos proteger. Soldados. E um órfão revoltado é tudo o que precisamos. - O homem se agachou à altura do garoto, afastando a lâmina da arma de seu amigo. O puxou pelo colarinho ensanguentado pra cima, junto de si, encarando seus olhos verdes. Suspendeu-nos enquanto cavucava toda a extensão de seus pensamentos.- Qual é seu nome, garoto?

- G-Gilgamesh... - Tossiu. Se pudesse voltar ao passado, Gilgamesh escolheria voltar àquele momento, preferindo se auto-degolar com a lâmina do outro súdito a que responder à pergunta.

- Gilgamesh. Um nome comum. O Censo de Corsária apontou que mais de 40% da população se chama "Gilgamesh". Ha! A ralé tentando ser nobre. - O homem balançou e lançou o garoto para uma pequena jaula, cujas grades estavam quentes pelos sóis. Se não tivesse roupas anti-calor consigo, tinha certeza que seria um ovo frito ali mesmo. - Vamos, Gam. Temos um órfão pra formar.

Os dois se assentaram na cabine, à frente da jaula em que estava. Via poucos carros como aquele, então sua surpresa não foi pouca quando os avistou viajando sobre o deserto. Se ao menos soubesse que eles estavam ali com um propósito ainda mais surpreendente...

Como dito antes, Gilgamesh estava enfiado numa espécie de gaiola. Eles estavam na frente, um ao lado do outro, conduzindo uma criatura muito famosa - e custosa: o Cavagrifo.

Ele era algo tão úmido e gelatinoso que Gilgamesh não conseguia descrever. Os que tinham aquilo prendiam os tentáculos, saídos de seu pescoço, com algum adorno nobre, afinal, só nobres andavam com aquilo. Outra vantagem em ter um Cavagrifo? Bem, ele sabia voar, afinal, aquelas asas membranosas deveriam servir pra algo além de causar a falsa-impressão de uma anomalia genética. E elas não só voavam, como sua resistência e força era tamanha que chamavam-no de "Tiamat com pernas".

Agora, após certas turbulências, Gilgamesh via sua casa de tijolos amarelos sumindo aos poucos, tal qual o borrão vermelho, perto do jardim, sendo sugado pela areia. Estavam saindo da atmosfera de Corsária, e alguns dispositivos explodiram das grades da gaiola. Pensava que morreria no vácuo, talvez essa fosse a intenção de seus algozes, porém um brilho vermelho resplandeceu do teto, antecedendo a descida de paredes posteriores às grades. Podia ouvir os súditos de Anu conversando ao longe, suas vozes perdidas num ambiente longe do abraço gravitacional de seu planeta. O único que estava lá fora, cavalgando (ou navegando?) pelo éter espacial, era o Cavagrifo. Gilgamesh nunca soube ao certo como aquilo não congelava ou morria pela pressão, mas se pegou admirado por aquela criatura tentaculosa.

Pássaros Quebrados - Livro III - Estrada de EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora