Prólogo

2K 162 38
                                    

Lótus não conseguia se concentrar em mais nada. A sala sagrada nunca estivera tão barulhenta, mas não tanto quanto o turbilhão de sentimentos que a agrediam por dentro, sentimentos esses que a faziam querer gritar a plenos pulmões, como se isso fosse libertá-la daquela maldita dor. Seu ser estava dominado por total desespero. Acabara de ver sua preciosa filha sucumbir, levando consigo dois deuses. Amaldiçoava-se por ter sido tão fraca e não ter conseguido protegê-la, sequer merecia ser chamada de mãe. Do fundo da sua alma, desejou que seu ventre se tornasse seco. Não queria mais gerar vida alguma.

 Seu olhar vagou pelo ambiente de um branco imaculado e deteve-se nos anciões. Encarava-os como a criança que era, ante aqueles seres milenares e divinais; suas vestes excepcionalmente brancas pareciam resplandecer, como se a própria luz emanasse delas. Os semblantes daqueles seres majestosos eram duros e acusatórios, e ela sabia bem o motivo. Sim, eles estavam zangados. Muito zangados, e não era para menos; seu mundo estivera ameaçado, suas vidas foram ameaçadas. A culpa era tão e somente sua, ao menos assim sentia. Haveria remissão para sua existência miserável?

— Apolion, a sua sentença será descer à nossa prisão pela eternidade! — Vociferou o deus ancião que presidia o julgamento, seu olhar glacial fez gelar o sangue nas veias da deusa ali ajoelhada. Não teve como não notar-lhes as pupilas mudando para uma tonalidade branca e sem vida, demonstrando o quão mortal ele estava nesse momento. 

— Eu me libertarei e os destruirei! — Jurou vingança, sem aparente preocupação por ter sido condenado à pior prisão dos deuses. 

Não houve um sequer que tenha ido para lá que não implorasse por uma sentença de morte, após alguns milênios naquele submundo.

Não, Apolion jamais imploraria, ele era orgulhoso demais para isso. Decerto, mataria todos ali se tivesse uma única chance. Enquanto algemas e correntes de puro poder o envolviam, fazendo o sucumbir de joelhos e ser arrastado para o portal que o lançaria fora daquele espaço sagrado, em sua prisão perpétua, ele encarou Lótus com desprezo e fulminou:

— Aquela mestiça era uma inútil. Ela mereceu morrer... Não sabe quanto prazer senti em ver seu sangue rubro deixar seu corpo, de ver como a luz se apagou dos seus olhos...

— Seus filhos também partilharam do mesmo destino. — Lótus o interrompeu com voz contida, sabendo que não poderia perturbar a paz daquele ambiente, apesar que àquela altura, tal protocolo parecia algo irrisório. 

— Ambos inúteis... são todos inúteis! — Bradou forçando as amarras que o prendiam furiosamente. Empregava tanta força nisso a ponto do mármore ao seu redor romper-se e afundar. Mais correntes de poder surgiram, atando-lhe ainda mais seus braços e pernas e uma delas fez uma volta em seu pescoço, cujas veias estavam saltadas.

 Ao ouvir suas palavras, Lótus sentiu a fúria correr por suas veias, dominando-a. Num impulso que fez ceder sua vontade e último resquício de sua harmonia interior, seus pés se elevaram do chão, voou acima do seu inimigo numa investida feroz contra ele. Porém, correntes de poder ataram seu corpo no ar, imobilizando-a e puxando-a abruptamente para o solo. A dor a fez ofegar e se debater. Resistia com todas as suas forças. Queria o sangue dele em suas mãos. Ele lhe roubara tudo, era o verdadeiro culpado de toda aquela desgraça. O simples fato de saber que ele continuaria respirando, mesmo que numa prisão, a fez querer ceifar-lhe a vida sob a mais agoniante tortura.

Amargou aquele sentimento de inutilidade por não conseguir vingar a morte de sua prole. Lágrimas geladas cobriram seu rosto como um véu de dor e amargura. Ainda pode ouvir a risada maléfica dele preenchendo o ambiente sagrado, antes de desaparecer no submundo ao qual fora encerrado. Aquele riso desdenhoso a assombraria para sempre.

— Lótus... — o ancião a chamou. Sua voz era condescendente com ela, diferente do que fora com o outro condenado. — Por sua transgressão, tu serás a algoz de sua prole. Sua maldição durará enquanto os deuses forem deuses, enquanto o mundo for mundo...

Ela já não ouvia mais a continuação de sua declaração de sentença. Nada mais importava. Fora difícil induzir os filhos de Apolion a ceifar a vida de sua filha e agora teria de reviver isso num ciclo interminável. Seria uma tortura sem precedentes; antes a tivessem condenado à morte ou à prisão eterna. 

Sim. Desejava a morte.

Depois que fora deixada ali sozinha com sua própria dor, esteve por muito tempo vagando e rememorando tudo. Quase enlouquecera no limbo que criara para si, enquanto via a passagem das eras. Viu mundos nascerem do caos e outros chegarem a extinção. Por muito tempo, apenas presenciou sem participar de nada, nem para criar e nem para destruir. Esteve imersa em sua própria existência, desejando ser tragada pelo que quer que conseguisse salvá-la de sua condição vil e miserável. Rogou aos seus ancestrais por misericórdia, mas nenhum veio em seu auxilio.

Nesse meio tempo, viu um pequeno mundo ser criado e evoluir à passos largos. Um mundo que fez aliança com os deuses; o mundo que seria a expiação de sua culpa. Acompanhou-o engatinhar no meio de sua nevoa particular de loucura. Seus seres eram poderosos e imortais. 

No meio deles, viu uma criança ser gerada no ventre de sua madre; seu coração encheu-se de tristeza e dor por aquela menina. Sua maldição lhe alcançara eras depois, chamando-a para traçar o destino daquela pequena e inocente criatura, para quem apresentaria a morte.

Sim, a morte. Não havia redenção, apenas a injusta morte para o ser frágil diante de seus olhos. Traria a morte para sua filha nascida de outra mãe, em outro mundo.

 Expiaria sua culpa causando ruína a inocentes. Não queria mais ser uma deusa, não queria mais a imortalidade. Queria morrer.

Lágrimas turvaram sua visão... lágrimas ainda turvariam sua visão por muitas e muitas vezes, sempre que esse ciclo se iniciasse.

Um ciclo eterno de desespero e dor; de tortura e ruína... de morte...

Meríade era um pequeno planeta que os deuses trouxeram à luz; possuía uma civilização tecnologicamente muito avançada, com naves capazes de vencer as fronteiras do espaço-tempo, e poder bélico, inimaginável, a olhos terrestres. Sua alta tecnologia contrastava com o estilo de vida dos habitantes e suas construções que remetiam ao medieval, mas com todo o conforto do moderno.

A terra em relação àquele povo nem sequer engatinhava, contudo era frequentemente visitada por esses seres que tinham certa preferência pelos terráqueos, e não se tratava de uma curiosidade apenas. Os humanos eram excelentes aquisições para o trabalho braçal que a nobreza requeria, já que certos serviços seriam desonrosos demais para os de sua própria espécie executar. Dessa forma, era possível encontrar humanos escravizados vivendo naquele planeta longínquo e sendo tratados como meros selvagens.

Embora fosse uma civilização avançada, com todas as descobertas louváveis, quer fosse na área cientifica ou em todas as outras áreas, Meríade travava guerras internamente, porque havia aqueles que se opunham ao déspota que estava no poder a quase um milênio.

Aragon era seu nome, um descendente da mais poderosa dinastia já existente, e o mais tirano deles. Esse macho possuía a ferocidade comum aos guerreiros daquela espécie, contudo era bem mais letal e sorrateiro. Entretanto, ainda que fosse um monarca cruel, ele tinha ferrenhos defensores de seu governo, dentre eles, Pandora, sua irmã.

Em contrapartida, tinha na figura do líder rebelde, o seu mais feroz opositor. Layus era um guerreiro forjado no calor de inúmeras batalhas e se encontrava há tempos à frente da resistência.

Por outro lado, havia uma mulher que estava longe de ser sua oponente, mas por ser a preferida dos deuses e estar apenas abaixo deles em status e poder, viria a despertar a fúria do soberano e se tornar seu alvo — A grã- sacerdotisa.

A GRÃ- SACERDOTISAOnde histórias criam vida. Descubra agora