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Dizem que histórias de terror não são capazes de causar medo, mas sim de despertá-lo, extraí-lo do lugar mais profundo de nossas almas.
Acho que cada pessoa sabe o que lhe atormenta, embora muitos insistam em manter seus olhos fechados para isso, não acredito que seja uma saída viável.
Pois, em algum momento o que temo e vai se tornar o que preciso enfrentar.
           
Fechei os olhos enquanto a água quente molhava cada parte de mim, queria muito aproveitar aquele momento, minhas pálpebras começaram a pesar e eu podia jurar que adormeci, mas não sentia isso, era como se estivesse presa em um lugar entre pesadelo e realidade, senti suas mãos, de um cinza quase branco, pressionando meu pescoço, seus braços, apesar de magros, possuíam tamanha força que em algum momento imaginei todos os meus ossos quebrando em seu abraço esmagador, as veias azuis quase saltando do seu corpo, como se aquela criatura horrenda, ainda possuísse uma pequena fagulha de vida, ao qual se agarrava desesperadamente. Olhar para sua boca, era como encarar um abismo, ora ela se curvava de forma estranha, ora ela esboçava um sorriso macabro, suas unhas enegrecidas, perfuravam minha pele, enquanto o sangue vermelho vívido, escorria sobre nós, a única cor, que se sobressaía naquele mar de cinza, branco e preto. Eu podia ver através dos olhos que aquele ser não possuía, uma fome que parecia ser insaciável, o desejo por algo, que ele tinha e perdeu, e que jamais poderia recuperar.

            Eu me agarrei as bordas da banheira e me levantei apavorada, encarei todos os cantos do banheiro, tudo estava exatamente igual, a taça de vinho pela metade, o livro aberto, em cima da mesinha, os sais de banho que eu usara, pela metade, em cima da pequena estante, a toalha e o roupão, conforme eu havia separado. Eu dei um suspiro. Não sei dizer exatamente em que momento eu cochilei. Foi um pesadelo horrível. Eu bebi o conteúdo restante da taça, em um só gole. Me sequei e vesti o meu roupão, devolvi o livro que estava lendo a estante na sala.

Olhei para o relógio, já eram 09:30 da noite, peguei o celular, há três mensagens, uma de Lana, me perguntando como eu cheguei e duas de Cris, me perguntando como foi a mudança e o que eu achei da cidade. Eu respondi rapidamente, enquanto preparava o macarrão instantâneo que eu trouxe, não estava muito disposta a cozinhar e menos ainda depois daquela experiência estranha. Também não havia muita coisa na geladeira, e ainda não tivera tempo, e sinceramente, nem muito dinheiro para fazer compras.

            Na sacada do pequeno apartamento, observei a cidade. Essa visão em outras circunstâncias teria me proporcionado uma calma inabalável, mas eu não me sentia assim. Respirei fundo absorvendo todo o ar que misteriosamente se derrama sobre a noite, ás poucas luzes que estavam acesas, são apagadas antes das 10:30 já passava da meia noite, e parecia que o mundo inteiro estava dormindo.

Uma brisa leve tocou em meu rosto, como a carícia suave de um amigo saudoso, um arrepio percorreu a minha espinha. Apertei meus braços em volta do meu corpo, parece que aquela seria uma noite realmente fria, fui em direção ao meu quarto, e quando estava prestes a fechar a porta, o percebi. Uma silhueta, estava muito escuro, mesmo quando eu tentei ajustar minha visão, não consegui vê-lo nitidamente.

Pisquei com força e ele desapareceu. Esfreguei as têmporas, foi um dia e tanto, afinal. Estava exausta, então deitei na cama e por mais que o cansaço, me fizesse dormir quase que instantaneamente, aquela figura permaneceu na minha mente.

            Depois de semanas procurando por um emprego que atendesse aos meus requisitos, eu encontrei uma única vaga em uma cidade pequena, chamada Black Hill, com pouco mais de 8.000 habitantes, decidi me mudar na hora. Depois da morte da minha avó, eu tive um surto de depressão, foi como se uma sombra grande e escura envolvesse completamente a minha vida. Ela era como um porto seguro pra mim desde a morte dos meus pais e a perda dela me afetou completamente, minhas melhores amigas, Leah e Cris foram de grande ajuda e importância, para que eu conseguisse continuar, não sei o que teria sido de mim se não fosse por elas, apesar da sensação de vazio, eu sabia que não estava sozinha. Um ano depois Leah se casou e mudou de cidade, devido ao trabalho do marido, Cris precisou viajar, para cuidar de seu avô que estava muito doente. Nesse tempo eu já estava quase concluindo o curso de história na universidade local, com muito esforço, depois de três anos e meio trabalhando em meio período e estudando á noite. Antes mesmo de me formar, eu já estava procurando uma cidade nova, onde eu conseguisse trabalhar naquilo que gosto, e que me permitisse estar em contato direto com a história em si. Encontrei uma vaga para professora, na pacata cidade de Black Hill em um colégio particular, o pagamento era mais generoso do que eu esperava, só precisaria passar no teste e atender a alguns requisitos.

            Apesar de ser uma cidade pequena, o lugar era muito bem equipado, com cafés, lojas, restaurantes, contando até com um pequeno shopping center, havia um pequeno café na esquina, com um pouco mais de privacidade que os demais, e ainda possuía uma variedade de livros disponíveis para quem quisesse ler, enquanto degustava de um delicioso café. como ainda não comecei a trabalhar e não disponho de muitas coisas, o lugar é acessível e ótimo para passar o tempo. Daqui também é possível observar, boa parte da cidade, a única coisa que me incomoda, na verdade, é que apesar de o lugar estar cheio, as pessoas permanecem silenciosas, não se ouvem risos, nem conversas aleatórias, ninguém parece notar a minha presença, ou se notam, ignoram completamente, parece até que não existem curiosos nessa cidade. Deve ser por que estão todos lendo, eu ri nervosamente, pensando em como as minhas preocupações pareciam idiotas, e além disso quem quer lidar com pessoas fofoqueiras. Voltei a me concentrar no meu livro.

            Mas havia algo mais... lá no fundo, que me causava um leve frio na barriga e um arrepio que subia pelas costas... o sonho, a silhueta no canto escuro...

... algo que me deixava em estado de alerta e muito inquieta.

CIDADE SEM COROnde histórias criam vida. Descubra agora