Eu abri meus olhos com certa dificuldade, a luz branca da manhã, pareceu um tormento. Não sei dizer por quanto tempo fiquei desacordada, aos poucos a minha visão foi se ajustando a claridade, e eu pude observar o local em que me encontrava. Era algo como um leito de hospital, haviam duas poltronas de couro próximas a janela, uma mesinha com alguns livros, cujos títulos se esvaíram com a passar do tempo, de modo que não era possível ler. As cortinas eram brancas e leves, a forma como o vento as movimentava passava uma impressão sobrenatural, que me fazia pensar no véu de uma noiva que há muito tem esperado por seu amado que nunca virá.Alguns quadros simples enfeitavam as paredes, um deles prendeu a minha atenção por um instante. Uma jovem, muito bonita, lábios grossos, olhos grandes e escuros, o cabelo descia em cachos dourados, desenhando uma moldura perfeita para o seu rosto jovial, em sua boca um meio sorriso, indecifrável, algo em sua expressão me é extremamente familiar, mas também me causa um leve arrepio, como se soubesse algo segredo obscuro. Há também uma pequena cômoda no canto, com um vaso de tulipas amarelas, uma revista, possivelmente de moda, não consigo identificar, e há também um pedaço de papel amassado.
Eu fiz um esforço pra tentar me levantar antes da enfermeira aparecer , então me dirigi a cômoda e agarrei o papel. Coloquei-o rapidamente dentro da minha bolsa. Pode parecer loucura, mas minha intuição me diz que ele foi colocado ali, para mim. Ouvi alguém bater na porta e antes que pudesse responder, ele entrou.
-Com licença? - O homem me encarou curioso. -Não sabia que você estava acordada, acho melhor chamar logo o médico, pra te avaliar. Ele vai dizer se você precisa ficar em observação.
-Espera. - Minha voz saiu mais rouca do que eu previ, o que me assustou um pouco. -Quem é você?
-Ah! Me desculpe pela grosseria. Eu me chamo Nathan, sou o chefe do departamento de polícia de Black Hill. - Ele estendeu a mão, eu refleti antes de apertar.
-Sempre ouvi falar que a taxa de criminalidade daqui era quase nula. - Eu o fitei, mais demoradamente do que pretendia.
-De nada. -Ele disse quase sorrindo e saiu apressado.
Um esboço de sorriso escapou da minha boca. Meu corpo estava levemente dormente, olhei pra minha mão, o lugar onde eu cravara a unha, estava coberto por um pequeno curativo, eu suspirei exausta, apesar de dormir por horas, os acontecimentos pareciam mais distantes agora, como se tudo não tivesse passado de um pesadelo, mas eu sabia que não. Estava certa do que tinha visto, nada nunca me pareceu tão impossível e tão real ao mesmo tempo. Tentei recordar cada detalhe do dia em questão, lembro de levantar cedo, tomar o meu café, fazer minha corrida matinal. O dia parecia especialmente bonito, com o sol da manhã banhando as ruas, cheias de árvores verdes que emolduravam o centro da pequena cidade, devo ter corrido por mais ou menos 30 minutos e então voltei para casa. Depois organizei a minha estante de livros, tomei um banho e fui para o meu café favorito aqui em Black Hill. Tudo parecia perfeitamente normal, até demais. Sinto que há algum detalhe que me escapa, que eu não consigo lembrar. Tentei forçar um pouco mais a mente, mas o médico interrompeu meus devaneios.
-Bom dia, senhorita. - Ele é mais jovem do que a maioria dos médicos que conheço, o cabelo negro deixa seus olhos azuis ainda mais vívidos, apesar de estar sorrindo, ele parece mais cansado do que quer demonstrar. -Sou o Dr. Miguel, em outras circunstâncias seria um prazer conhecê-la.- Ele me estende a mão gentilmente.
-Sinto muito que tenha tido este tipo de recepção em nossa cidade - Ele suspira, parecendo chateado - aqueles jovens não deveriam ter saído. As vezes eles fazem isso, não com muita frequência, mas... é inevitável.
-Saíram de onde? -Eu indaguei curiosa.
-Do manicômio. - Nathan entrou no quarto, a voz inexpressiva, como se já tivesse respondido milhares de vezes a mesma pergunta.
-Então aqueles jovens eram... Eu entendo.
Provavelmente outra pessoa não teria percebido, mas eu era mestre em observar coisas e pessoas, em cada detalhe, havia um certo incômodo que pairava entre os dois, mesmo entre os risos e conversas que vinham de ambas as partes. Algo parecido com culpa.
Depois de me avaliar e fazer algumas anotações na minha ficha o Dr. Miguel concluiu que eu já podia receber alta.
-Bom, acho que você já pode ir, senhorita. Ah, mais uma coisa, sei que vai parecer estranho, mas quando a senhorita cravou as unhas na mão, o sangue, pra onde ele escorreu exatamente? - Eu arqueei uma sobrancelha. a princípio pareceu uma pergunta meio bizarra, se não ridícula. Mas eu pensei. O sangue. era o detalhe importante que havia me passado despercebido, mas de que forma aquilo poderia ser relevante? Eu ri comigo mesma, acho que dormi demais.
-A grama, doutor. Disso eu lembro perfeitamente, a forma como ele escorreu pela grama. -Fazendo-o parecer uma quantidade bem maior do que realmente era. Mas ninguém precisava saber.
O médico me cumprimentou e sem dizer mais nada saiu do quarto. Eu notei que ele deu uma leve encarada no policial que parecia fazer anotações, possivelmente querendo parecer que estava concentrado, mas não estava, na verdade estava incomodado. Ele olhou pra mim e deu um sorriso.
-Quanto a senhorita, eu vou levá-la para casa.
-Mas eu posso ir andando, ou chamar um táxi.
-É meu dever fazer com que a senhorita chegue em casa em segurança. -Ele me estendeu a mão e pegou minha bolsa. Eu dei uma risadinha diante do argumento dele.
-Então, me faça um favor, senhor policial e pare de me chamar de senhorita.
-Como eu devo chamá-la então?
-Pode me chamar de Linda. -Ele pareceu refletir como se fosse um assunto de grande importância.
-Está bem, desde que me chame apenas de Nathan.
-Trato feito. -Então eu segurei sua mão e saímos juntos do hospital.
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CIDADE SEM COR
HorrorApós a morte de sua avó, Linda decide recomeçar sua vida na pacata cidade de Black Hill. Mas ela vai descobrir que nem tudo sobre o lugar é tão tranquilo quanto parece ser.