XIV

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Fechei o livro com força, e fiquei encarando o teto, parecia irreal demais, embora, ultimamente palavras como "irreal", "impossível", "improvável", tivessem sido retiradas do meu vocabulário. Minha mente permanecia girando com as revelações recentes e pela primeira vez senti que estava no caminho certo para descobrir os mistérios que cercavam a cidade.

Observei o relógio na parede, os ponteiros se mexendo vagarosamente, como se o próprio tempo tivesse cautela para passar.  Então apertei as mãos em torno do livro e refleti sobre o porquê de as pessoas me orientarem a não ler o livro.

Haviam duas opções plausíveis. A primeira é que elas teriam caído nas mentiras de alguém e a segunda é que elas conheciam a verdade, mas preferiam que permanecesse assim.

Acien. O nome ficou dando voltas em minha cabeça, como uma idéia que se recusava a ser esquecida e deixada de lado. Meu cérebro me dizendo que eu devia saber algo mais. Só um pequeno detalhe. Como um nome que fica na ponta da língua. Quem era ele? Continuei a tecer  conjecturas, enquanto deslizava para debaixo das cobertas, sentia que descobriria logo. Mas não compreendia aquele sentimento estranho que  insistira em brotar dentro do meu peito à medida que a revelação se aproximava.

Eu sentia que a noite seria longa, mas precisava dormir – pelo menos tentar – porém a sensação era que eu estava sendo sufocada por todas as descobertas que fizera, pensei em Siena e em Yohanna. Precisava ser forte se quisesse ir em frente.

Então, por mais estranho que me pareça, fiz algo que não faria normalmente, fechei meus olhos e rezei. Era uma pequena oração que minha avó me ensinara quando pesadelos profundos vinham me impedir de dormir.  Eu me sentia melhor, embora nunca admitisse para ela ou para mim mesma.

E hoje o efeito foi o mesmo da infância, a repetição das palavras e a sonoridade me fizeram adormecer profundamente, como se o próprio Deus estivesse me preparando para o que estava por vir.

O despertador tocou as 5:30 como de costume. Levantei sentido que estava revigorada, fui ao banheiro e escovei os dentes, depois prendi o cabelo e coloquei uma roupa leve. Enquanto calçava os tênis senti o telefone tocar. Muito cedo, pensei. Era Nathan.

Como eu já estava de saída, então decidi ignorar. O que quer que fosse poderia ficar para depois. Enquanto trancava o apartamento, notei que o lugar parecia diferente, como se o mal presente lá tivesse encolhido e precisaria de muito esforço para vê-lo. Algo que não estaria disposta a fazer.

Desci as escadas rapidamente e meus olhos se voltaram para a portaria que estava vazia. Observei a mesma mesinha de antes, onde sentara com o senhor Arthur, o jornal acabara de ser entregue, quando eu voltasse em meia hora ele provavelmente já estaria ali. Ansiava por vê-lo, precisava falar sobre a verdade que descobrira.

Corri com mais vigor do que o normal, pelo mesmo caminho que sempre trilhara, mas tudo parecia ser visto por um panorama diferente. Aqueles olhos que me seguiam ainda estavam ali, o medo existia, mas não era mais capaz de me engolir e isso, eu percebi, assustava o que quer que fosse que me espreitava nas sombras.

Retornei para casa, pouco tempo depois, precisava organizar alguns planos e os livros que usaria naquele dia, mas queria ver o porteiro o quanto antes.  Assim que me aproximei do prédio e entrei no pequeno saguão foi o primeiro que avistei, parecia um pouco mais jovem que antes.

Já estava pronta para falar. Quando ele ergueu o dedo e pôs sobre os lábios. Precisei silenciar aquela vozinha que gritava dentro de mim. E esperei enquanto ele retirava um papel amarelado de dentro do bolso da camisa gasta, falando sobre algumas coisas aleatórias, como se tentasse desviar a atenção de algo. Arthur abriu a gaveta para pegar uma caneta com o logotipo do prédio, depois escreveu em uma letra cursiva e linda, imaginei que talvez ele tenha estudado em uma época onde isso era exigido.

Ele entregou o papel, depois sorriu com gentileza e serviu-me um café. Retirou um papel embrulhado com dois bolinhos.

-Estão quentinhos, eu mesmo fiz. – balancei a cabeça afirmando.

Os olhos voltaram- se para o papel e o que fora escrito nele.

Não fale, ele pode ouvi-la. Ele ainda vive. Ele tudo, ele ouve tudo.

CIDADE SEM COROnde histórias criam vida. Descubra agora