A N N A D E A R E N D E L L E
O vento rigoroso do inverno é uma navalha fria na minha face. Bato os dentes e estremeço, abraçando a mim mesma. A nevasca uiva ruidosa e tudo à vista é um borrão escuro de cinza e branco. Tento andar, mas o meu corpo encontra resistência. Estou com neve até a cintura.— Elsa! — Chamo, mas a ventania apaga minha voz. — Elsa!
Forço a vista na nevasca, sem enxergar nada. Aguço os ouvidos, procurando escutar algo além do sopro do vento. Tenho a impressão de ouvir uma melodia. Viro, na direção do som. De repente, a ventania se cala e resta apenas o cenário branco-acinzentado gelado, e as notas cristalinas de uma voz profunda. Entre as árvores, uma silhueta feminina se aproxima na neblina, até que eu veja, por fim, uma mulher tão terrível e linda quanto a paisagem de inverno.
Sua imagem tremeluzia. Por vezes, usava uma tiara de prata e uma toga branca grega, que esvoaçava graciosa, como os longos cabelos negros. Sua imagem oscilava, então as vestes finas de princesa eram substituídas pelas roupas de caça, como o manto de peles e o arco e flecha em suas mãos. Os cabelos negros, por sua vez, se arrumavam em várias tranças com anéis de prata, chicoteando ao vento, antes de tremeluzirem e tornarem a ficar soltos. O olhar era sempre o mesmo, porém. Olhos castanhos como café gelado; furiosos, determinados e lindos.
E sua canção me parece tão familiar quanto ela mesma.
— Há memórias no lugar/ Onde o Vento Norte encontrar o mar/ Durma logo e verá/ O Rio te leva a se encontrar. — Ao cantar, a deusa caminha em minha direção, como as nuvens que se preparam para cobrir o céu. — Suas águas vão trazer/ Os segredos que você não vê/ Siga a sua intuição/ Pra não perder a direção...
Ao mover o pé para ir ao seu encontro, a deusa se desintegra num pequeno tornado de neve, que é levado pela brisa congelante.
— Espera!
Ergo a mão, como que para tocá-la, sem sucesso.
Sua canção parece soar além das árvores cobertas de gelo.
— A voz de longe irá soar/ E te alcançar onde estiver/ Não deixe o Medo atrapalhar/ Ao enfrentar o que o Rio trouxer...
De alguma forma maluca que só acontece em sonhos, a neve já não está mais me atrapalhando. Avanço pelas árvores, desviando de agulhas de pinheiro e galhos retorcidos com estalactites de gelo em miniatura. Volto a encontrar a deusa, parada em frente ao rio que resiste ao congelamento do inverno, carregando algumas placas de gelo na correnteza.
— Há memórias no lugar/ Onde a mãe sempre vai lembrar — ela entoa os versos finais. — Lembre disso ao me chamar/ E ao se perder, vai se encontrar.
Ao olhar para mim, por cima do ombro, já não é mais o rosto severo de uma deusa invernal que encontro, mas o rosto doce e sereno da minha mãe. Um sorriso cheio de ternura ilumina os olhos, de íris azuis cintilantes como topázios, iguais aos de Elsa.
Pisco, surpresa.
— Mãe? — Meu coração se aperta.
E o sonho acaba.
Quando abro os olhos, vejo o tecido do teto de uma tenda. Roncos suaves chamam minha atenção e flagro Kristoff ao meu lado, dormindo sentado num banquinho, numa posição bem desconfortável, com o pescoço torto. Há uma manta me cobrindo e estou sobre um saco de dormir. Me coloco sentada. Minhas têmporas latejam e reparo que há unguentos e curativos em arranhões pelo meu braço.
Assim que começo a me perguntar onde estou e o que está acontecendo, ouço o som bruto de rochas deslizando — pedras, perfeitamente redondas, rolam para dentro da tenda e param à minha frente, silenciosas. É quando elas espocam feito pipoca, transformando-se em criaturas vivas.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Equinócio de Anna
FanficAnna estava morta, mortinha. Ou, pelo menos, deveria. É que ao invés de um caixão a sete palmos da terra, a garota se viu sequestrada por dois adolescentes estranhos que a levaram para um lugar mais esquisito ainda: o Acampamento Meio-Sangue. Agora...