Prólogo

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22 de março de 1860

Tabatha está arfando.
   Não sei ao certo. Pode ser pela fumaça. Ou é porque estamos correndo por mais de dez minutos.
   A vila parece infinita. Cada centímetro dela vai queimar. Tive medo da chegada desse dia.
   Busco incessantemente. Eu sei onde ele está, mas sinto que pode não permanecer.
   Sinto, não. Tenho medo dessa possibilidade.
   Piso. Encalço. Cada centímetro desse chão é minha casa. Tenho a impressão de ver sangue manchando as pedras.
   Meus pés ardem. O vestido de pano de Thabata balança no ar, e seus cabelos castanhos perderam totalmente o brilho devido à noite e as chamas que cercam a vila. O meu cabelo, pelo contrário, só fica mais ruivo e vermelho enquanto balança num ritmo frenético.
   As árvores que nos cercam são de silhuetas macabras. É uma visão tenebrosa. Acho que nunca senti tanto medo em minha vida.
   Respiro desesperadamente. Não enxergo minhas mãos quando as ponho frente ao meu rosto. Meus pés não doem mais. O resto, sim.
   Quase tropeço uma, duas, três, quatro vezes. Sinto meus ossos fazerem uma sinfonia de estalos dentro de mim.
   Lágrimas correm, apressadas, em direção ao meus olhos, e logo escorrem, na esperança de suavizar a ardência. Mas quanto mais água vem, mais fumaça as secam. É como uma competição infinita, e o fogo vence a cada confronto.
   Minha cabeça está um caos pior que o que me cerca. Deixei John no meio da confusão para buscá-lo. Eu precisava salvar a criança, e ele sabia disso. Mas o deixei lá, ainda assim. Ele deveria ter vindo comigo…
   É uma colisão constante do que fui e do que me tornei. Egoísta e arrependida. O que sou agora?
   Onde está John?
   Eu saberia, se não estivesse aqui. Mais um pouco de culpa para carregar nas costas.
   Thabata segura meu braço direito. Sua mão parece ferver. Volto à realidade. Meus pés ardem. Meus braços estão suando. Essa parte da vila não foi atingida pelo incêndio, mas, ainda assim, o ar continua pesado e tóxico. Fede a fumaça. A testa de minha irmã está molhada. Seus lábios grossos tremem. Medo. Ela sente medo.
   Observo as palafitas que cercam a minha. As pessoas costumavam a rir por aqui. Agora as casas estão escuras e vazias por dentro.
   Será que elas vão queimar tanto quanto lá?
   Sim, elas vão.
   Chego à palafita onde moro. Percebo que poderia morrer asfixiada pela falta de ar em meus pulmões. Já está difícil de correr e respirar ao mesmo tempo, e agora a fumaça está maior e deixando o ar mais abafado. O gosto do caos desce pela minha garganta junto ao ar. Engasgo.
   Consigo ouvir o choro de dentro. O som e o ambiente causando um pânico perfeito dentro de mim. Um pânico maior. No fundo, quem grita são as pessoas.
   Entro. Thabata fica na porta, para o caso de alguém chegar perto. Corro até o quarto.
   No caminho, olho para os cômodos do que eu costumava a chamar de lar. O sofá, a estante com livros, até mesmo as janelas. Aqui eu vivi meu amor, a alegria de realmente ter uma família. Depois que Vincent apareceu, nunca mais achei que fosse haver paz. Mas tive por um bom tempo.
   Queria que minha mãe pudesse ter visto isso. Se ele não tivesse a matado.
   Ele está ali, se debatendo, gritando e chorando de susto. Chego bem perto dele e me inclino no berço. Aqueles braços gordos com curvas redondas, aqueles olhos – o direito, de cor castanho claro, e o esquerdo, de cor verde – cheios de lágrimas.
   Ele lembra o pai. Espero o ver de novo.
   Sinto seu peso em meu colo. Ele parece mais pesado. Queria não ter de tirá-lo daqui. Queria que ele ainda pertencesse a esse lugar. Que todos nós pertencessemos. Talvez esse lugar não exista mais.
   Sempre que ele chorava, eu fazia o mesmo que estou fazendo agora. Eu o ergia em meu colo e o olhava profundamente, querendo que meu olhar transmita paz, segurança. Que o meu olhar diga que está tudo bem. E eu me sentia amada, e sentia que amava.
   Eu não transmito essa paz agora, e sei que ele se acalma porque sente tanto medo quando eu.
   Ele fecha os olhos. Espero que adormeça.bOlho para a entrada. Thabata entra e me manda abaixar.
   Ah, não.
   A fumaça está mais densa pela janela, e noto que o céu noturno está mais laranja. A cor faz a sombras das árvores parecerem assombrações.
   E os passos que eu estava esperando que aparecessem, aparecem.
   Prendo minha respiração e cravo minhas mãos no pano que cerca a criança. Estamos aqui e estamos bem.
   Os passos, perto demais.
   Thabata fecha os olhos e respira fundo. Quando tento fazer o mesmo, penso que, quando abrir, estarei cercada por Urbanos. Abro os olhos.
   Quase visualizo os passos passando pelo lado de fora.
   Não entrem.
   Os passos passam. Ninguém entra.
   Paro de apertar tanto a mão.
   Com ele em meu colo, por um milésimo de segundo, o mundo é bonito de novo. Nada do que estava acontecendo lá fora está acontecendo mais. Me traz paz.
   Mas lembro que ele não me pertence. Lembro por que estamos passando pelo o que estamos passando.
   Eu não sei quem fez isso, mas não é possível que foi a mim. Não me reconheço. Nem a criança o faz.
   Me direciono até a porta do quarto, onde Tabatha está, e ando devagar até a saída dos fundos, sem olhar para ela. Sinto como se, ao olhar em seus olhos, ela leria a mentira que me corrói por dentro. Isso não vai acontecer.
   Lá fora, sinto o calor e a fumaça quase rasgando minha pele. O incêndio já está chegando.

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