Atualmente, 19 de março
*--*--*--*--*--*--*--*
É noite, de novo. Parece que só vivo à noite. De dia, me sinto morto.
Acordei muito tarde. Usei meu moletom favorito o dia todo. De fios bagunçados e olheiras, meus machucados quase já não existem mais. Minha respiração parece perfeita. Não me lembro do momento em que Michael deixou meu lado, fechou a porta e se deitou em sua cama. Passo o dia em completo silêncio. Jolie fala pouco, e somente o necessário. Quis saber como eu estava. Somente aceno. Não existem conversas. Philip não deixou seu quarto. Acredito que ninguém tenha comido algo o dia todo. Eu não o fiz. Annie me pediu licença quando eu estava prostrado no meio do corredor perto do banheiro. Me lembro de ter corrido para a floresta no meio do dia e de pensar que o dia estava nublado e ventando, um bom motivo para não tirar o moletom.
De dia, me sinto morto.
Estou sentado no chão ao lado da estante de livros da sala de Philip. Sinto cheiro de mofo. Ainda estou com o moletom. Não fosse pela luz, o interior do jato estaria um breu. Me levanto, apago a luz e me sento no mesmo lugar onde estava.
O ar está quente aqui dentro, mas sinto o frio que emana dos montes bater no exterior. Ele quer entrar. Eu quero sair.
Será que eu me lembro onde pus?
Pensei nisso em alguns momentos do dia, mas não estava com vontade de procurar. Não sei onde coloquei no dia em que cheguei aqui.
Entro em meu quarto. Michael está dormindo. Como é possível que eu não tenha pensado nela desde que saí do mercado? Será que não pensei? Não acho em meio às minhas roupas, nem nas de Michael. Elas têm seu cheiro.
Minha mochila. Onde está minha mochila? Debaixo do beliche.
Me estico, evitando fazer barulho, e a pego. Ela tem cheiro de velha. Procuro. Procuro. A carteira está jogada no interior. A abro, quase desesperado. Vejo a foto. A pego.
Oi, mãe.
A parede no fundo é alaranjada. Uma mulher ruiva segura um bebê no colo – eu.
Ela parece me amar, eu pareço amá-la. Vovó sempre dizia que eu me pareço muito com minha mãe.
Me sinto incompleto olhando para a foto.
Minha mãe é muito bonita. Seu sorriso carrega um ar de segurança, de presença, de cuidadosa. Me lembro dos primeiros dias no jato. Sentia que não sabia quem eu era, que estava perdido. Minha mãe saberia. Ela não está aqui.
Será que ela tinha essas mesmas dúvidas? Será que se sentia assim? Não tem como saber. Sinto sua falta, não sei como.
Estou sentado no chão do corredor. Estava desesperado e não sei como cheguei aqui.
Devolvo a foto na carteira. Volto para o quarto, a guardo na mochila e a devolvo debaixo do beliche. Tudo que estava por perto, os Urbanos deram um jeito de tirar de mim. Ela está longe e guardada. Está segura.
Saio do quarto sem saber as horas. As noites têm sido assim. A luz da sala está acesa, a que apaguei. Philip está na cabine.
Começo a andar devagar. Será que ele vai querer minha presença? Não posso ter certeza, mas quero saber como ele está. Meus passos fazem o som que Philip precisa para saber que está prestes a ter companhia. Ele não olha para trás.
Passo pela sala e entro na cabine. A pouca luz que passa pela porta ilumina o chão do lugar. O parabrisa deixa passar a parte alta das árvores e o céu negro. Os montes, grandiosos, à nossa esquerda. Parece que balançam junto ao vento.
Me sento no lugar do co-piloto. Philip está parado, encarando o céu. Não digo nada, nem ele. Ficamos por mais de dez minutos, ali, emanando morbidez.
- Está tudo bem? - finalmente digo. Ele não se mexe para responder.
- Bom, eu não estou. Nenhum de nós está, não é? - ele diz, algo que eu descreveria como uma frase em completo silêncio.
É difícil olhar para ele, então olhamos na mesma direção. Noto que sinto falta daquele mesmo brilho radiante que sua irmã também carrega.
As árvores balançam, é tudo o que consigo descrever. Não sinto a necessidade de me remexer na cadeira.
- Nem sempre tive coragem, sabe...? - Philip quase me assusta quando quebra o silêncio que se fez. - Estava quase desistindo de tudo, desistindo da minha irmã, mas foi ele quem me ajudou a levantar. Ele me deu esperanças, não me deixava largar. E foi assim desde sempre. - Sinto meu coração quebrar. Meu tio era parte da família e eu o amava muito, mas não me parece mais certo nivelar nossas dores. Eu nunca tive de lidar com nada, quando Philip carregava o peso do próprio destino e o da irmã nas costas. Eu estava quase despreocupado, pelo menos até os militares me tirarem da segurança. Isso foi definitivo.
- Eu sinto muito.
- Tudo bem - ele responde. - Você também perdeu seu Carvoeiro, não foi? - E então ele me olha. Sou absorvido por seus olhos coloridos. Isso não parece mais algo comum, considerando que o resto do mundo não tem essa mesma característica e tenho tido que os encarar nos olhos. Acredito que os olhos guardam a parte mais verdadeira de alguém. Eles parecem entregar os sentimentos mais genuínos. É assim com Jolie e Michael. O olhar não mente.
- Sim - me lembro de responder. Seu olhar volta para o chão.
- Deve saber como eu me sinto.
Não respondo.
- Não sei se mencionei, mas tenho estado preocupado com você, com suas crises. Parece que te destroem.
Assinto. Como poderia discordar? Eu mesmo sinto isso.
- Qual a sensação? - ele me pergunta.
De início, não sei o que responder. Não parece um sentimento que pertence a mim.
- Não parece pertencer a mim. A sensação é que o mundo a minha volta se choca comigo, e tudo o que meu interior faz é afastar toda essa energia. Acho que é isso que leva tudo embora... - Parece uma declaração vaga. Não entendo ainda. Minha voz é baixa para que só ele a escute.
- Os vendavais e... - Ele parece esperar por mais.
- É... Acho que prefiro chamar de tempestades.
Ele assente.
- Deve ser assustador.
Também assinto. O silêncio volta a existir.
Até agora, não havia pensado direito no Carvoeiro de Philip. Penso em sua esposa, que provavelmente está morta também. Eles poderiam ter vidas normais, não fosse os Rurais. Eles mantiveram vivo Philip. Não fosse por ele, eu poderia já ter morrido de fome ou, pior, nas mãos dos Urbanos. Não fosse por ele, Philip não estaria aqui.
Agradeço em silêncio para a alma dele. Nunca pagarei o preço das coisas boas que ele já me fez.
- Mas e agora?
- Ainda estou pensando - ele diz, lentamente.
É isso. Por hora, vou ter que lidar com os pesadelos, e somente eles.
- Boa noite. Por favor, fique bem.
Ele assente.
- Você também.
Me levanto e saio. Algo me diz que Philip não terá facilidade alguma em levantar dali, tampouco em dormir. Espero que a manhã chegue logo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rural
Teen Fiction"Então eu também me viro e deixo ela para trás. Deixo as lembranças. Deixo minha irmã, deixo meu marido, deixo toda a minha vida. Deixo tudo. Bem, quase tudo. Porque o que sobrou ainda estou prestes a perder. Meu filho." Depois de ter sua vida e fam...