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Atualmente, 13 de março

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O sol estava se pondo quando chegamos à beira da floresta. É onde o Carvoeiro nos deixa. Todos, em silêncio, observamos como Philip se mantém próximo de Annie, que ainda está quieta.
   No jato, com meu corpo parecendo uma nuvem, num fim de tarde mais escuro que a própria noite, todos parecem exaustos.
   Uma conversa rápida acontece entre Michael e Philip, que escuto na porta do meu quarto. Aparentemente, os dois irmãos passarão a dividir um quarto, o de Michael, e ele passará a dormir no meu. Eu concordo, pois tem um beliche nele.
   Minha mente é uma rádio dessintonizada. Não sei por quê, mas não me sinto feliz, nem aliviado, nem com Michael, nem com nada.
   Estou em minha cama, olhando pela janela. Agora há pouco, tive uma conversa com Michael sobre como vamos viver a partir de agora. Tudo parece muito normal para ele. Talvez esteja tentando ser otimista em relação à nova vida que estamos fadados a ter. Eu entendo. Depois disso, ele me deu boa noite e, aparentemente, dormiu. Tudo o que me lembro, porém, de pensar durante a conversa, é em como é estranho ter uma conversa normal com ele. Depois da noite no hospital. Mais alguns segundos e eu percebo que é porque, na medida do possível, aquilo é normal para ele. Ele não sabe de Jolie.
   Honestamente, nem eu. Precisamos conversar sobre isso.
   O céu está parcialmente nublado, com algumas estrelas tentando brilhar, sem sucesso. Não vejo a lua do espaço minúsculo. Me remexo no colchão. O quarto tem um cheiro diferente agora - o cheiro dele.
   Se existe algo que me impressiona mais que a natureza terrena, é o céu. É como outra dimensão, uma tela gigantesca azul que forma desenhos e cores, um mundo infinito que eu nunca poderei alcançar mas sempre poderei contemplar. Vendo o pôr do sol da floresta onde outrora morei, eu sonhava com, um dia, poder alcançar o horizonte, como Michael havia me dito. Hoje, sei que não posso, mas também não quero. Se ele puder estar lá e eu puder o ver, já me basta.
   Olho para o relógio. Consigo ver o ponteiro menor. O maior não existe. Ele aponta o número doze. Já é meia-noite. O livro que eu um dia joguei na porta de frustração ainda está ali. Já me sinto familiarizado com o quarto, é como se minha cabeça facilitasse o costume, já que, aparentemente, isso vai ser o resto da minha vida. 
   Não gosto de pensar assim. Meu cérebro tem facilidade de reconhecer pensamentos completamente abstratos e sem embasamento, e alguns deles são como minha vida será daqui um tempo. Tento visualizar quando será a próxima mudança súbita. Quando voltarmos à cidade, nos próximos dias, e encontrarmos Lily. “Nos próximos dias” não é um pensamento muito justo, quero dizer, não sei se será mesmo daqui uma semana. Pode ser que seja um mês, um ano…
   Toco a janela com a unha do indicador direito. Lily estará lá em algum momento, disso eu sei. O problema é como conseguir dormir até lá.
   Nesse dia, minha vida mudará de súbito. Estarei tranquilo para dormir, para acordar, para andar, para viver. Ou não? Ainda estaríamos sendo caçados, e uma guerra ainda estaria acontecendo. Mas posso não fazer parte dela…
   Não, eu já faço parte dela.
   Não sei quando minha vida mudará, mas sei que ainda não será para melhor. Ainda.
   O relógio abráquio, o cheiro de coberta mofada, a minúscula janela que deixa passar o céu. É tudo familiar demais. Moro aqui há décadas. Só tem um porém. O ar aqui é mais calmo que lá fora. Como posso reclamar?
   Fecho meus olhos e não tenho dificuldade para dormir.

Mas tenho dificuldade em permanecer dormindo.
   Acordo, talvez, três vezes. Duas delas são em períodos menores que uma hora. Acordo sem pesadelos. Na terceira vez, sonho que o mesmo garoto que encontrei na vila, dizendo que as bombas estavam no trem, trouxe um exército de militares para o jato. Fugi para a floresta e me deparei com o mesmo labirinto que estive procurando por Annie. Todos os corredores estavam fechados por homens. Todos os que pude ver esvaziaram seus pentes em mim. Eu estava morto, no chão, sangrando. Quase grito quando acordo. Depois disso, não tento dormir outra vez.
   Sinto que preciso andar novamente, como na noite em que beijei Michael pela primeira vez, ou permanecer ali, como quando Jolie veio até mim e a beijei, aqui mesmo.
   Meu Deus, o que é isso?
   Quando a porta range, Michael se mexe um pouco na cama, mas não acorda.
   O interior do jato está muito mais escuro do que outrora esteve, quando saí de madrugada, alguns dias atrás. Ando a passos lentos, usando um calção preto, descalço e meu moletom favorito - um suéter preto com apenas uma estampa branca na frente, uma casa simples de ponta cabeça. Minha banda preferida. Michael me mostrara as músicas deles uma vez e eu passei a ouvir por conta própria. Ano passado, no meu aniversário, o Carvoeiro me trouxe esse moletom junto com um CD deles. Nunca recebi presentes melhores.
   Ao que parece, quando avisto Jolie sentada num dos bancos da sala, eu deveria sentir algo estranho, como surpresa, mas a única coisa que penso é se eu estou ao menos arrumado para me encontrar com ela. Ela sempre está.
   Sentada no banco de costas à cabine do piloto, do lado direito do corredor, olha para fora. Ela não acendeu nenhuma lâmpada, mas percebo que usa uma camiseta simples com flores desenhadas e usa um short curto - tão curto que mostra suas coxas. Um frio sobe pelo estômago. Desde o ocorrido, não nos olhamos, tampouco falamos.
   Me aproximo e sento na cadeira de frente a ela. De impulso, ponho minhas pernas na mesinha que nos separa, como costumo.
   Ela me encara. Seu rosto apresenta exaustão. Quase me esqueço que ela também passou um bocado na base.
   - Você tá bem?
   Ela assente, somente. Me assusta.
   Acho que em algum momento, meu coração acelera, e eu sei por quê. Não sei como ela se sente depois de ter visto o beijo. Não sei se ela está irritada, ou chateada, ou os dois.
   Ou se ela me odeia. O pensamento me dá calafrios.
   - Tem certeza?
   Não tenho resposta. Ela está parada, como uma estátua.
   - Olha, eu sei que… - Tenho medo de continuar falando. Tenho medo dessa conversa. Eu não quero que ela aconteça. Simplesmente não quero. Mas devo isso a ela. - Me desculpa por…
   - Por…? - Ela não se move. É aterrorizante.
   - Por não ter te contado.
   Ela dá uma risada confusa e apoia seu rosto em sua mão esquerda.
   - Você acha que é por isso que eu tô chateada?
   Pisco, pesadamente.
   - Não - Claro que não.
   Ela assente. Tenho receio em continuar falando. Eu poderia simplesmente me levantar e sair dali, correr para meu quarto, fingir que aquilo nunca aconteceu. Deixar Jolie de lado…
   Jolie não é nem nunca foi uma pessoa ameaçadora. Ela é calma e sabe conversar. Ela não ficaria irritada se eu saísse daqui agora.
   Não. Eu não conseguiria. Como poderia? Eu amo Jolie. Amo a garota que está aqui na minha frente. Sempre senti algo. Sempre. É só o que sinto por ela que reconheço. Não é?
   - Eu… - Começo a tremer. - Eu… - Não consigo… - Eu não… - Não consigo.
   - Tá tudo bem, Klaus.
   - Não está - digo, ríspido. Acho que é assim que as coisas funcionam. Só consigo me expressar quando estou irritado. Isso não é justo. - Eu não queria que você tivesse visto. Eu ia te contar, eu… - Perco as forças. Não consigo continuar. Forço as mãos, uma contra a outra, no meu colo. Não sinto os apertos.
   - De quem você gosta? - Ela me olha. Como posso responder a essa pergunta?
   - É de você que eu gosto.
   - Não precisa mentir…
   E ali enfraqueço. Jolie não parece irritada ou confusa. Ela parece triste, fala baixo, olhos ameaçando lágrimas. E aquilo me dói.
   - É de você que eu gosto.
   - Você não me ama, Niklaus.
   - É claro que eu amo.
   - Então como é possível você amar outra pessoa?
   Aquilo me cala. Ela está certa. Por mim, essa conversa está encerrada. Mas não para ela, aparentemente.
   - Não sei como é pra você, mas pra mim não funciona assim. - Seu olhar vagueia. - Desde que me conheço por alguém, você, Lily, Michael - vocês são as únicas coisas que eu conheço. Minha realidade é essa. E uma das coisas que me mantiveram viva esse tempo todo é saber que, em algum momento, eu pertenceria a alguém. - E me olha. - Eu nunca tive dúvidas que seria você. Não somos irmãos, Klaus, não temos o mesmo sangue. Fomos criados juntos, e só. Então por quê…
   Ela não termina. Não é nisso que acredito. Não é esse o impedimento.
   - Não é esse o impedimento. Não existe impedimento… - digo, diminuindo a voz, porque não sei se acredito nisso. Mas quero acreditar, e quero que ela acredite. - Jolie, eu sempre soube disso, eu sempre gostei de você. É só que…
   - O que é, então?
   Não consigo ficar confortável. Minha voz treme, meu coração palpita. Como é possível alguém não conhecer a própria verdade?
   - Foi Michael quem me beijou…
   E algo acontece muito rápido. Ela quase revira os olhos, soltando o ar que segurava nos pulmões, no mesmo instante que sinto vergonha de mim mesmo. Nós três sabemos que não é disso que se trata. O que acabei de fazer foi uma jogada suja, uma tentativa de escapatória. Foi covarde e injusto. Injusto com os dois.
   - Não, me desculpa, eu…
   - Esquece. Foi ele, então.
   - Jolie…
   - Por favor, chega.
   -...eu gosto de você.
   - Eu estou cansada.
   Não digo mais nada. Ela está cansada.
   Espero alguns segundos até olhá-la nos olhos, e ver que ela está chorando. Não sei o que sinto por dentro, mas me assusta.
   O que mais me assusta é que quero, e muito, chorar, mas as lágrimas não saem.
   - Eu não sei o que está acontecendo.
   - Para, Niklaus.
   - Eu não sei o que é. - E eu tremo, e minha voz também. Quero chorar. Junto as pernas em meu colo. - Eu tô com medo da gente se machucar. Eu sempre gostei de você, por favor, acredita em mim, isso é verdade. Sempre. Mas quando ele me beijou da primeira vez, eu… eu percebi que gosto dele também. - Me odeio. Tenho medo de não estar fazendo sentido para ela, porque, para mim mesmo, não estou. - Eu não sei como é possível, eu… Eu não sei, Jolie, por favor…
   - Por favor, o quê, Klaus?
   De um momento para o outro, tudo muda de súbito. Pânico, desespero e medo me assolavam, mas eu percebo que isso só mora dentro de mim no momento em que ela diz isso.
   Jolie está calma, está parada, está entendendo o que está acontecendo, só está chateada. Estou desesperado para entender o que está acontecendo comigo, enquanto ela já sabe. A questão presente aqui é o que vamos fazer sobre isso. Enquanto isso, só estive pensando em mim, com medo de perder o carinho dela.
   - Eu não te culpo pelo o que você sente, Klaus. Eu só não posso ser responsável por isso.
   Eu só respiro fundo e assinto. Não consigo falar.
   - Você disse que está com medo da gente se machucar, mas eu não tenho poder de fazer isso com você.
   E eu olho para ela. No momento, tenho absoluta certeza de que ela pode, sim. Então…
   - Por que você diz isso?
   - Porque você tem outra pessoa pra amar.
   E isso declara o fim da conversa. Sei disso porque a fala dela me mata. Em partes, porque é verdade, e em outras porque ela, implicitamente, dá o aval: não pode existir nós dois se existir a mim e Michael.
   - Eu vou pra cama.
   E respira fundo. Antes de ir, ela aperta meu punho de maneira carinhosa. Uma mensagem silenciosa de "sinto muito" e "estou machucada", e se vai.
   Ali, não me movo. Por alguma razão, nesta situação, não tenho dificuldades em organizar minha cabeça.
   Eu ainda gosto de Jolie, e gosto de Michael. Não tenho a remota ideia de como isso é possível. Ela sabe disso e não consegue aceitar, o que significa que não vamos ficar juntos agora, e talvez nem depois.
   Isso também significa que não consigo ficar com Michael. Não consigo ficar com um enquanto penso no outro. Isso é injusto com qualquer um dos dois.
   Esse tempo todo, meu receio era somente machucar a mim mesmo, e só agora me dei conta de que os dois também podem se ferir. Isso me torna egoísta. Isso faz com que eu me odeie. Me sinto feio e sujo, não gosto de mim.
   Michael não sabe de nada disso. Como poderia? Moramos juntos por décadas, e ele pensa que sempre senti o mesmo por ele, isso porque lhe pedi um beijo no hospital. Eu construí coisas e ideias na cabeça dos dois, isso sem entender nem o que estava acontecendo em minha própria cabeça.
   Aperto o joelho direito com a mão esquerda, enquanto balanço a cabeça, devagar, tentando fugir do meu próprio corpo. Isso tudo não me faz esquecer que somos irmãos e que eu os amo, e que estaremos juntos para sempre, mas que existe algo em mim que eu não entendo, e diz respeito a outras duas pessoas.
   Eu sei o que é o amor, mas ainda não entendi a paixão. Tudo parece novo demais - as coisas que senti com ela e com ele. Parece simplesmente um instinto, algo que quero porque, em minha cabeça, necessito disso para sobreviver. Não cabe a mim decidir o que sinto, mas sim o que faço a respeito disso. Infelizmente, já fiz demais, fiz coisas que não posso voltar atrás.
   Vou viver pra sempre ao lado da minha eterna paixão, e da que acabou de nascer, que não sei ainda se já estava aqui.
   É incrível como não sei de nada, como quero correr daqui. Como não posso, cedo às lágrimas. Lágrimas rápidas e pesadas, que machucam meu corpo e meu coração. Incontroláveis.

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