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Atualmente, 15 de fevereiro

O chão treme. O céu também.
   Tudo parece tremer em meu interior, tirando todas as minhas entranhas de seus lugares. Meus ouvidos zunem. Minha costa dói. Não posso me levantar. Qualquer vestígio da explosão pode me acertar. Depois de ser atirado no chão, ouço mais três estrondos fortes e longos, e uma luz vermelha ilumina o céu. Catástrofe.
   Ouço barulhos altos e graves. Coisas caindo do céu. Uma chuva de pedras, galhos e até pessoas. Não ouso levantar a cabeça. Dá para ver que pessoas voam, no máximo, há vinte metros do chão e caem com um baque surdo, mortas. Vestígios de poeira caem sobre todo o meu corpo. Fico deitado ali por, talvez, dois minutos. Finalmente tiro a cabeça de entre os braços.
   Vejo um grande vazio.
   A floresta sumiu. Um buraco enorme e fundo se entende pela área inteira de onde foi, um dia, uma linda floresta de pinheiros. No campo aberto, corpos se estendem para lá e para cá, mortos. Carbonizados. Alguns não têm mais alguns membros. Pernas, braços e até cabeças - simplesmente sumiram de seus corpos. É grotesco.
   Algo trava minha respiração. Desvio o olhar. Minha respiração fica pesada e ameaça escapar sem minha autorização. Meu estômago sente uma pressão forte. Involuntariamente, libero a pressão da barriga e abro a boca. Vomito ali mesmo.
   Em minha cabeça, as coisas giram e saem de seus devidos lugares. Tudo fica confuso. Não vejo o que sai de mim. Quando termino, respiro profundamente e caio há alguns metros de distância, mais perto da linha do trem, exausto. A paisagem é preenchida por poeira e fumaça.
   Tudo parece se embrulhar e contorcer em meu estômago. Estive por incontáveis anos dentro de um esconderijo presenciando apenas mortes irreais, inventadas, encenadas.
   Acabei de presenciar um massacre.
   Quero rir. Talvez por histeria.
   O zunido em meu ouvido diminui gradualmente. Acredito que bati a cabeça, porque tudo continua girando.
   As árvores, as cores, minhas tardes caminhando – tudo se foi com a explosão. O pouco do que eu acreditava não existe mais. Mais uma que devo creditar aos Urbanos.
   Saio de meu transe e me levanto. Movimentos lentos e cuidadosos não adiantam, porque minhas costas e mais mil membros em corpo doem.
   Olho para trás e vejo Michael, olhando assustado para o campo. Jolie ainda está deitada com a cabeça nos trilhos do trem, até que se vira. Todos se entreolham de forma estranha. Não sei se eles me enxergam direito. Seus cabelos estão empoeirados, bagunçados.
   Observo o trem vindo da direção oposta à floresta. Antiga floresta. Ele deve estar há um quilômetro daqui. Intacto, por sorte.
   Perco a força. Sento novamente, arquejando. Meus pensamentos estão todos sintonizados num canal em branco. Um cinza instalado, não me permite pensar. Só me deixa girar em meu próprio mundo.
   O trem é automático. Vovó me explicou uma vez enquanto acampávamos. Eles colocam as coordenadas no computador de controle que fica no primeiro vagão e ele para nos lugares indicados antes de percorrer todo o percurso. É um trem de carga, então ele geralmente para nas grandes cidades do estado.
   O sol tem um brilho alaranjado pela poeira. O ar parece pesado de se respirar. Uma pequena sede surge, mas minha água é limitada. Tenho que guardar para quando essa sede piorar. O gosto amargo em minha boca ainda é presente. Por fim, tomo um gole.
   Não consigo olhar para trás, nem para a floresta, nem mesmo para minhas próprias mãos. Um som abafado no fundo de minha cabeça começa e para em períodos. Imagino que sejam lembranças de minha vida ali, querendo me atingir, apesar de lutar contra com todas as minhas forças. E então a voz vai se tornando mais clara.
   - Klaus – chama Michael, outra vez, balançando meus ombros num ritmo calmo. Tudo volta num segundo. O som do trem pelos trilhos. As coisas param de girar e voltam a seus devidos lugares. A dor em meu corpo todo volta. O sonho deixa de ser um sonho. A floresta se foi. Estou no mundo.
   Posso morrer a qualquer instante.
   O trem está mais perto. Teremos de pular em um dos vagões, não importa qual.
   Esperamos sentados e em silêncio até ele chegar. Nos arrumamos. Seguramos as mochilas. O peso dela faz minhas costas doerem ainda mais. O trem finalmente chega.
   Os vagões são da cor cinza. Estão meio enferrujados. Todos são da mesma cor e do mesmo formato retangular com uma pequena abertura atrás.
   Seguindo um padrão, a cada dez vagões, vem um vagão menor, com uma abertura completa em cima. Dentro há sempre montes de areias e em outros, montes de pedras.
   O trem não está rápido, mas precisamos correr ao seu lado e grudar em uma das escadas que fica ao lado de cada vagão. Eu começo a correr e os outros dois fazem o mesmo. Minhas costas não param de doer. Faço uma careta enquanto corro. Finalmente, dou um pulo e sinto minha mão em um dos degraus. Estão frios. O vento fica mais forte. Noto que a palma de minha mão direita está suada. O movimento do trem faz meu corpo parecer que está flutuando. A sensação do vento sobre minha pele me traz uma paz momentânea que sinto que não vou sentir novamente. Me jogo para o lado e adentro o vagão. Um cheiro de ferrugem atinge meu nariz.
   O vagão está escuro. A luz do sol vaza por alguns buracos nas paredes e no teto. Está cheio de montes de feno. Logo depois, Jolie entra. Seu rosto parece cansado. Michael vem logo atrás.
   Sento no canto do vagão e sinto mais dores em minhas costas. Não consigo evitar um gemido. Minhas pernas relaxam e eu percebo o quanto estavam cansadas. Minhas têmporas estão suadas. Minha respiração começa a acalmar quando Michael se senta ao meu lado. Observo Jolie do outro lado do vagão, olhando vagamente para fora, seus cabelos dançando, alguns poucos fios grudados em seu suor. O vagão balança e range, e o único som audível lá fora é o do balançar do trem e de seu apito.
   Sentado, começo a pensar em mais coisas - como serão nossas vidas a partir de agora. Como nos infiltramos na cidade e em como sobreviveremos. Como não obtenho resposta, volto a pensar nas tardes que passei na floresta. Os únicos momentos que não me sentia escondido, preso, foram andando nela.
   Minha marca de liberdade não existe mais.
   - Conseguimos - diz Michael.
   - É, conseguimos – respondo, e faço uma pausa antes de falar outra vez. - Mas e agora? - Olho para ele. Seu rosto estava apagado e com uma expressão cansada. Ele começa falando devagar.
   - Até onde sei, esse trem vai dar a volta na floresta e vai parar numa cidade do outro lado dela. - Gesticula com as mãos. - Se Lily ouviu a explosão, ela vai para lá. Quando a vovó nos explicou sobre o trem, ela estava junto.
   Assinto.
   - Fico preocupado. Ela podia estar perto dos pinheiros… - Solto um longo suspiro esperando que ele me console. Ele sempre o faz.
  Ele fecha os olhos e encosta a cabeça no vagão.
   - Você viu quantas pessoas estavam no campo naquela hora. Ela os viu. Foi para bem longe. Agora fique tranquilo, não encha essa cabeça de besteiras como você faz sempre. - E então abre os olhos e sorri. Um sorriso gentil.
   De certo modo, me pego tão preso ao sorriso que mal consigo sorrir de volta. O que essa imagem me traz? Segurança?
   Volto a o observar. Seu olho verde fica mais claro com uma faixa de luz que o atinge ali. Seu sorriso ilumina ainda mais seus olhos.
   Por um segundo, estou seguro. Me agarro a essa segurança. As coisas vão ficar bem se ficarmos juntos.
   Guardo esse momento comigo, essa sensação, essa lembrança, e a imagem que ficará em minha cabeça é a do sorriso de Michael. Este momento vai me ajudar a ter segurança a partir de agora.
   É Michael. Quem sempre me fez companhia. Fala de como a vida é uma droga, de como ele gosta dos livros de poesia que eu lhe empresto, de como mostra suas músicas com letras horríveis - e ri delas comigo e, além de tudo, tem sempre a cabeça no lugar.
   Espero não ter perdido tudo junto com a floresta.

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