Atualmente, 17 de fevereiro
*--*--*--*--*--*--*--*
Percebo duas coisas: uma delas é que o rosto do garoto ameaça um sorriso. A outra é que Michael me empurra para trás, em sinal de proteção.
- Para trás! - ele protesta. - Não chega perto…
O garoto parece confuso. Alguns segundos depois, ele entende, e então se espanta.
- Não! Por favor, não sou quem vocês estão pensando… - E levanta a mão direita em nossa direção.
- Eu disse pra se afastar! - Michael grita. Minha cabeça dói, sua mão encosta em meu peito. Só consigo encarar a figura nova. Sinto medo dela.
Ele respira pesadamente, e eu também. Sei que Michael o encara, assim como eu. Depois de alguns segundos tensos, Michael se inclina para agarrar sua mochila. Faço o mesmo com a minha.
- Por favor, eu…
- Não. - Michael soa ríspido.
Os olhos do garoto pedem compreensão. Dois olhos de cores diferentes.
Isso é impossível.
Michael começa a recuar, e eu acompanho seu ritmo. O garoto tenta protestar mais uma vez, que é quando eu me viro e começo a correr. Michael faz o mesmo.
- Eu sei onde está a sua irmã!
Esbarro em uma árvore. O impacto contra meu peito me faz cair. Michael para, olhando para baixo. Minha visão dança. Estou zonzo.
Minha irmã? Onde está minha irmã?
- O que você disse? - tento dizer.
A distância entre nós dois e o desconhecido não é grande. Ele parece ter ouvido o que eu disse.
- Sua irmã. Eu vi pra onde a levaram…
Michael segura meu braço. Cambaleio, tentando ficar de pé.
- Você não… você não… - Michael gagueja.
O garoto se aproxima devagar. Não sinto que devo afastá-lo, dessa vez.
- Uma garota alta, cabelo castanho…
- Pare - Michael ordena.
- Sardas no rosto? Um olho é…
- Eu mandei parar!
As mãos de Michael ficam tensas em meu braço esquerdo. Isso me faz levar forças às minhas pernas e ficar em pé por conta própria.
- Ele está descrevendo ela… - sussurro.
- Não, Klaus. Pode ser qualquer uma.
Michael puxa meu braço. Não estou convencido. Ainda vou deixar que ele me leve…
- Por favor, confiem em mim. São as mesmas pessoas que levaram Annie!
Algo frio sobe pela minha espinha. Reconheço o nome. Não preciso me esforçar para parar e me livrar dos braços de Michael.
Encaro o homem. Ele parece desesperado agora. Ele não pode ter inventado.
- Levaram… quem? - digo, em voz baixa. Ele tem toda a minha atenção agora. Algo se acende em seu olhar.
- Annie, minha irmã. A rural de 1859.
Meus músculos congelam. Parte de mim quer sair dali com Michael. Parte de mim sente que ele diz a verdade. Em qual devo confiar?
Me lembro da vovó, no dia em que ela me contou sobre a história dos rurais. Me lembro da garota, e me lembro de seu nome: Annie. Devo ter tocado em seu nome pouquíssimas vezes desde que soube de sua história. Com o carvoeiro, talvez? Talvez com Michael.
Sei porque ainda não fugi dele. Quero acreditar na história que a vovó me contou.
- Annie… - Michael sussurra. Ele também para de relutar.
- Vocês a conhecem? - ele pergunta.
Olho para Michael e ele olha para mim. Estamos pensando a mesma coisa, provavelmente. Não sei como responder a pergunta. Michael engole em seco, indicando que também não sabe.
- Olha - ele continua -, eu posso contar pra onde levaram sua irmã, e posso ajudar. Por favor, me deixem ajudar…
- Como posso confiar em você? - Michael pergunta. Deixo ele tomar conta da situação. O garoto parece pensar.
- Posso contar o que aconteceu com Annie, minha irmã. Como foi… tudo aquilo. - Ele parece mais tranquilo. Michael também. Acho que eu deveria estar.
- Então… tudo bem - Michael responde.
O garoto ajeita a coluna. Ele parece se preparar para contar uma longa história. Não me movo.
- Hum… Eu morava no sul do Reino Unido, com a minha irmã e meus pais, quando ficamos sabendo da guerra. - Ele conta pausadamente, gesticulando, desviando olhares e respirando fundo. Sinceramente, parece mais nervoso que eu. Parece implorar para que confiemos nele. Algo na maneira como ele age me faz acreditar que ele é realmente um rural. Me sinto culpado de o deixar tão nervoso.
“A notícia deixou a vila toda chocada. Meus pais não saíam mais de lá, poucos de nós trabalhavam. Alguns meses depois de 1855, meu pai precisou ir para a guerra. Eu nunca mais o vi… - Ele pisca pesadamente. Parece confuso. Respira fundo. - Era só mais um dia, daqueles comuns, me perguntando se meu pai ainda estava vivo, quando avisaram sobre os soldados se aproximando. Me lembro do rosto da minha mãe… - Seu rosto se escurece. Ele parece assustado. - Ela nos escondeu, eu e Annie, no quarto de nossa casa. Ela saiu e… ela não voltou. As coisas começaram a ficar barulhentas. Comecei a sentir cheiro de fogo para todo lado… Minha irmã me olhava assustada. Ouvimos um estrondo na porta, ela tremeu. A gente se olhava, pedindo pra que as coisas só… parassem. Que tudo parasse e voltasse ao normal. Uns passos pesados se aproximavam da gente, e, bem, eu não podia deixar que eles chegassem. Nos levantamos e saímos pela janela. Não demorou pra que alguém nos visse. Muita fumaça, muito fogo, muito desespero… Corri por alguns minutos antes de perceber que ela não estava mais comigo.”
“Eu só pensava na minha irmã. A fumaça me deixava um pouco zonzo, mas não parei de correr. Apesar do frio e da neve no chão forrando meus passos, tudo parecia mais sonoro, mais caótico. - Ele estremece. - No meio do caminho, encontrei uma árvore grande, com alguns troncos espalhados pelo chão. Chegando lá, escorreguei e não pude mais me levantar, então me escondi ali. Segurei minha respiração, como se cada suspiro pudesse ser audível. Minhas pernas descansavam, mas eu não. Não parava de pensar para onde iria, o que faria ou o que poderia ter acontecido com as pessoas que conhecia na época.”
Ele respira fundo. Continua.
“Sentado, não ouvia nada, a não ser meus suspiros pesados e meu coração. Só dava pra ver a floresta seca. O chão cheio de cobertores de gelo. Meu coração estava acelerado. - Ele leva a mão até o peito. Percebo que o meu também palpita fortemente. - Eu espiava algumas vezes, pra ver se encontrava algo, mas nada além de fumaça. Era isso que mais me desesperava. Quanto mais eu esperava, mais minha respiração ficava pesada. Num momento, tive uma crise de tosse desesperadora. Resolvi que não dava mais pra ficar ali.”
“Perdido, com frio, confuso, eu levantei meio cambaleando, me apoiando em árvores, indo em direção à vila. Algumas vezes, eu caía, me perdia no caminho, perdia a percepção, mas eu voltava a enxergar. Eu estava certo de que deveria encontrar minha mãe ou minha irmã, ao mesmo tempo que me preocupava a possibilidade de nenhuma das duas estarem mais vivas. Me lembro de começar a correr porque a vila nunca chegava. Atordoado, me lembro de quando figuras escuras começaram a aparecer no chão. Corpos. Eu via corpos para todo lado. Quanto mais apareciam, mais eu ficava assustado. Em certo momento, acabei vomitando no pé de uma árvore. Aquilo tudo era demais.”
Não sei descrever qual expressão ele apresenta agora. Me lembra horror. Ele está horrorizado.
“Eu estava muito perto da vila, então continuei meu caminho. A fumaça ainda estava tensa quando eu cheguei perto das casas e barracões. A neve havia se tornado água, e havia montes de corpos espalhados por todo o local. Nenhum sinal de algum urbano. Um extenso nada, além da morte.”
“Desesperado, eu caçava por meio dos corpos algum rosto familiar, mas a visão me dava náuseas. Me apoiando em coisas que eu mal reconhecia, minha visão girava e eu queria sair correndo dali, desejando que aquilo tudo fosse um pesadelo. Quando notei que não era, tropecei em cima de um corpo que não havia visto. - Ele me encara no fundo dos olhos. - Tropecei no corpo da minha própria mãe.”
Fecho os olhos com a imagem que me vem à cabeça. Quero que ela suma.
“Ela usava a mesma roupa que eu me lembrava que tinha usado naquele dia quando fugiu. Ela estava lá, com sangue na boca e nos olhos. Encarava um nada, e não carregava a doçura que ela me transmitia. Minha guardiã, morta. Não sei o que aconteceu com ela. Não consegui olhar direito. Vomitei outra vez, e comecei a chorar, chorar muito, sentindo raiva, tristeza e melancolia. Meu corpo se retesava porque eu queria fugir dali, mas eu não conseguia me movimentar. Eu não tinha energia pra isso. Então, por um segundo, tudo fica no mais puro silêncio pra, em seguida, eu ouvir berros. Eram vozes grossas, vociferando ordens. Ouço passos pesados, uma carroça, talvez, e estavam chegando perto. Me levantei dali e me escondi na casinha mais perto. Estava quase toda queimada, mas alguns pedaços de madeira ainda estavam em pé, e foi dali que tive coragem de espiar.”
“Alta, loira, magra, rosto manchado pelo incêndio, usava um casaco de couro, uma calça bem larga e uma bota nos pés. Carregada por dois homens. Essa foi a última vez que vi minha irmã. Ela não chorava, mas estava claro seu pânico - seus olhos se arregalavam e sua respiração pesava. Seus pés arrastavam sob a neve enquanto eles a carregavam pelos ombros. Os homens não pareciam sequer notar seu desespero. Eu não conseguia imaginar como uma pessoa poderia ser fria àquele nível. Eles andavam na direção leste da vila, mais pro limite. Meu coração pulava, como se quisesse sair dali e correr para ajudá-la. E eu não sabia o que fazer. Pior do que ver alguém que você ama sendo levado de você é saber que sua única opção é continuar no chão vendo tudo acontecendo e não poder fazer nada.”
“Depois de olhá-los severamente, eles chegaram em um amontoado de soldados ao leste da vila. Dentre eles, um homem alto, negro, de barbas grossas no queixo e no bigode, braços musculosos, vestindo quase a mesma roupa que os outros e portava uma arma enorme nas costas. Este fez sinal para os homens pararem, e então eles a jogaram no chão como se fosse um pedaço de lixo. Ele a encarou por alguns segundos e disse algumas coisas que não ouvi direito. Então ele a agarrou pelo braço direito e lhe deu um soco no rosto com a outra mão. Ela desmaiou. Me fez querer chorar. Minha mão ardia porque eu cravava as unhas nas pernas.”
“As coisas aconteceram mais rápido então. Eles a puseram em uma carroça mais à frente, a amarraram e os outros homens seguiram a carroça, que segue para longe da minha visão. Naquele segundo, eu caí para a realidade. Caí na neve e olhei para a vastidão à minha volta. O frio subia pelas pernas e se espalhava por todo o meu corpo. Eu já não sabia mais onde eu estava. Alguns segundos depois, fechei os olhos da minha mãe e me deitei ali, ao lado dela. Ela era minha protetora, e minha irmã estava viva. Eu precisava de uma guardiã, e minha irmã também. Então apertei forte a mão de minha mãe, e prometi que seria o guardião de Annie. Depois desse dia, eu não soube como ou por onde começar, mas sabia que não podia ser ali. Tenho andado sozinho por anos, caçando informações e juntando o máximo que eu posso. Por isso estou aqui hoje. Estou aqui por vocês.”Em algum momento da história, me apoiei na árvore atrás de mim. Em algum momento da história, senti a verdade no que ele dizia. Em algum momento da história, percebi que ele realmente é um Rural.
Respiro fundo. Também tive o corpo de alguém que amo aos meus pés. Sei o que senti. E sei que ele não mentiu.
Michael, ao meu lado, ainda encara o garoto. Espero que ele se pronuncie.
- Olha, eu sei que não dá pra confiar em um estranho, assim. Eu não confiaria… - o garoto diz. - Por isso quero mostrar a vocês que podem confiar em mim.
Michael desvia o olhar e olha diretamente para mim. Eu o encaro de volta. Uma pergunta silenciosa se faz. E agora?
Olho para além de Michael. O garoto agora mexe em sua mochila. Me reteso. Uma arma?
- O que você tá fazendo? - pergunto, segurando o braço de Michael.
Michael olha em sua direção. O garoto não responde. Quando Michael me dá um último empurrão, ele tira algo que eu não esperava da mochila. Um mapa.
Michael para, outra vez. Precisamos parar de nos precipitar…
- Esse é um mapa da indicação exata de todos os carvoeiros.
Estaco. Todos os carvoeiros. Como isso é possível?
O garoto estende o papel dobrado em nossa direção. Nem eu nem Michael movemos um músculo. Apenas encaramos sua mão.
- Tudo bem - ele inspira fundo. Deixa o papel no chão e, num gesto claro de recuo, ele se afasta com as mãos para cima.
Michael não me olha e anda até o papel no chão. Quando ele o pega, faz um movimento rápido em sua defesa. O garoto não se move. Nem eu.
Michael desdobra o papel, não tirando os olhos do desconhecido, e então revela um mapa. Um grande mapa.
Observo as linhas e analiso o que vejo. Sei reconhecer um mapa, e sei o ler. Michael me ensinou nas aulas de geografia. O fundo é branco. Algumas linhas são mais grossas que outras, fazendo desenhos aleatórios e confusos. Algumas áreas estão pintadas de verde, outras de um azul escuro. Algumas linhas finas em vermelho. No canto superior direito do mapa, uma rosa dos ventos. Ao lado, um título: “Mapa político do estado da Carolina do Sul, Estados Unidos”.
Michael observa quieto, assim como eu. Passo a ler tudo o que está escrito à caneta. Alguns círculos vermelhos estão espalhados pelo mapa que parece ser da área de, mais ou menos, 80 mil quilômetros quadrados. Na área mais para cima, alguns círculos vermelhos maiores e sem muitas informações, como números que não sei o que significam ou siglas. Vejo dois círculos próximos com as letras "F." e "G." próximas. O que toma minha atenção, porém, fica mais para o canto inferior esquerdo do mapa. Os círculos estão menores e mais próximos. Vejo algumas setas atravessando cidades, beirando rios e contornando os limites. Um círculo sozinho no meio de uma cidade chamada "Belfast", com a palavra "CIRCO" logo abaixo dele. Um pouco mais para a esquerda, dois círculos próximos, ligados por duas setas, uma para a direita, outra para a esquerda. Debaixo do círculo à direita, a letra "S." circulada inúmeras vezes, com uma minúscula linha ligada a centímetros acima dela, com outra letra, a "M.". No círculo da esquerda, grande e único, uma área verde e densa. Em baixo, a escrita "FLORESTA DE PINHEIROS" com uma letra ligeira e bonita.
Logo abaixo, grafado de maneira agressiva, a palavra "ESCONDERIJO??!".
Michael crava as unhas no mapa em suas mãos. Estou paralisado.
- O que são...essas linhas? Como você…
- O "S" é de Sean. Eu conhecia ele.
A maneira como ele nos encara me faz pensar que ele esperava alguma reação, mas eu não reajo ao nome, nem Michael.
- Oh, ah, acho que vocês não sabiam o nome dele…
Sou pego de surpresa. Sean? Seria ele…
- O Carvoeiro - Michael sussurra.
- Isso mesmo - ele responde. - Ele e o meu Carvoeiro são amigos.
Eu o encaro. Eu nunca soube o nome dele. Ele morreu sem que eu o soubesse. E se ele estiver mentindo?
Vejo um fio de esperança nascer em seus olhos quando ele continua falando.
- O "M." no mapa é o meu. Eles trocavam informações, mas Sean nunca revelou o esconderijo. Eu só sabia que ficava numa floresta ao sudoeste do estado. Não foi difícil…
Engulo em seco. Estou assustado. Por que estou assustado?
De repente, o mapa escorrega das mãos de Michael.
- Chega disso. Nós estamos indo embora, e você não vai nos seguir.
- Não, gente, pera aí…
- Chega.
Michael agarra meu braço. O puxão é muito forte.
- Estamos indo.
- Sua blusa, Klaus… É Klaus, não é? - Eu o encaro, estapafúrdio. O que eu ainda estou fazendo aqui? - Uma casa de ponta cabeça? Sua banda favorita?
O puxão para outra vez. O ar trava em meus pulmões. O que ele está fazendo? Como ele sabe da blusa?
Estou incrédulo. Minha voz falha.
- Como você sabe…?
- O seu Carvoeiro conseguiu com o meu. Os livros também…e os discos…e os pincéis…
O tempo para. As árvores param.
Sean era meu Carvoeiro. Foi Sean quem morreu aos meus pés. Sean era amigo de outro Carvoeiro, que era dele, do cara que está à minha frente agora.
Michael aparece em meu campo de visão. Ele o encara.
- Eu…eu não… - Sua voz também falha. - Onde está minha irmã?
O garoto sorri, aliviado. Respira fundo.
- Primeiramente, prazer, meu nome é Philip.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rural
Jugendliteratur"Então eu também me viro e deixo ela para trás. Deixo as lembranças. Deixo minha irmã, deixo meu marido, deixo toda a minha vida. Deixo tudo. Bem, quase tudo. Porque o que sobrou ainda estou prestes a perder. Meu filho." Depois de ter sua vida e fam...