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Atualmente, 17 de fevereiro

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Quando a vovó foi ao chão, Michael foi logo para cima dela. Ele balançava e gritava seu nome - ou como a chamávamos. Jolie estava por cima deles, tentando entender o que acontecera com ela. Lily tentava afastar os dois de cima do corpo, mas era inútil. Eu congelei. Sabia, no fundo, o que estava realmente acontecendo, mas não imaginava presenciar esse momento tão cedo. Depois de afastar os dois, Lily checou seu pulso. Ali ela já sabia a resposta.
   Ainda era de manhã quando nós a enrolamos com um lençol, a colocamos em um carrinho grande de carregar caixas, saímos do esconderijo e levamos ela até o lago na ponta da floresta. Lá, à beira do lago, queimamos seu corpo e jogamos os restos no lago.
   Michael estava abalado e não parava de chorar. De todos os quatro, ele era o mais próximo dela. Jolie ficou em choque por dias, quieta, sem comer e sem falar com ninguém - mesmo Lily tentando com todas as suas forças. Ela jurou vingança aos urbanos por fazerem isso com ela. “Eles vão pagar. Vão pagar.” Nada em sua voz passava confiança de que isso realmente aconteceria, então ela fugia para a floresta. Foi quando aprendeu a caçar. Já eu permaneci em silêncio, com algo me apertando o peito, me dizendo que eu nunca mais comeria seus bolinhos, ouviria suas histórias, bateria altos papos para passar o tempo com ela.
   Minhas lembranças desses dias sombrios falham, como se eu pudesse enxergá-las, mas com uma névoa espessa entre nós. Uma névoa negra, tão negra quanto a lembrança - afinal, foi há mais de setenta anos atrás. Mas me lembro como o clima na casa mudou. Lily aprendeu a se virar pela floresta e se refugiava por lá, a caçar. Jolie começou a cozinhar e a pintar. Suas pinturas, no começo, eram agressivas, desesperadas. Michael cantava e ouvia suas músicas trancado em seu quarto. Eu criei paixão pelos livros e comecei a escrever poesias. Sempre as conheci como espalhadoras do amor, do sentimento vivo. Nada do que eu escrevia parecia vivo. O vazio se expandia em mim. Escrever apenas aliviava.
   Agora não é diferente. Tudo está negro. Eu não tenho o movimento de nenhum de meus membros - apenas uma dor terrível na cabeça que se concentra em minha têmpora. Tudo ecoa. O toque das mãos de Jolie. Quando senti a dor. Quando acordei e vi Michael estirado no chão. Quando percebi que Jolie desapareceu.
   E então tudo escurece de novo e ouço uma voz no fundo dizer meu nome. O escuro que se instala agora não é mais o da inconsciência, e sim o de meus olhos fechados.
   Tudo volta num solavanco forte. A dor nas costas e na cabeça. A voz de Michael chamando por mim. Meus ombros sendo chacoalhados por ele. Então abro os olhos.
   Tudo parece calmo agora. Minha visão não está mais girando. Michael está ajoelhado ao meu lado, com uma marca roxa em sua têmpora esquerda, sangue seco espalhado por ela. Ele estava tentando me acordar. A luz do sol passando pelas folhas irrita meus olhos e faz minha cabeça doer ainda mais.
   - Acorda! - ele insiste, mas estou fraco demais para me mover rápido.
   - O que aconteceu? - Proferir palavras faz minha cabeça latejar mais - algo que eu não achei que fosse possível.
   - Levaram Jolie! - ele grita e me sacode.
   O desespero aparece de súbito.
   Me forço a me levantar e minhas costas doem, me pedindo misericórdia. Não consigo evitar um gemido. Quando me sento, minha cabeça pulsa ao ritmo de meus batimentos e as coisas voltam a girar. Ele se senta ao meu lado, me analisando de forma cuidadosa.
   - O que foi que aconteceu? - Noto o desespero em minha voz.
   - Eu acordei com três caras nos cercando… - Sua voz parece sonolenta. - Colocaram um pano na boca dela, ou sei lá. Antes que eu fizesse qualquer coisa, me acertaram com uma pedra na cabeça. - Isso explica seu machucado no rosto.
   Penso em perguntar se ele está se sentindo bem. Não consigo formular uma pergunta. Jolie.
   Jolie foi levada e não faço ideia de quem são as pessoas que a levaram.
   Me forço a me levantar rapidamente, mas minha cabeça dói ainda mais, como um outro golpe. Fraquejo e caio de quatro.
   Jolie. Tudo gira.
   - Ei, vai com calma. Você levou um golpe feio. Senta aí - ele insiste.
   - Quem… - tento dizer. Sussurros são tudo o que sai. - Quem a… levou…
   Jolie. Jolie.
   Penso no toque de sua mão.
   Meus pensamentos estão embaralhados - ou pelo golpe ou pelo desespero.
   Pelos dois.
   - Esqueceu que eu não sei mais que você? Klaus, te golpearam forte demais. Sente-se aí. Estou falando sério.
   - Como você consegue pensar em uma coisa dessas? - Minha voz se levanta involuntariamente, e isso faz minha cabeça piorar. - Se sentar enquanto ela está sendo levada por estranhos por aí?
   Tento me levantar. O golpe é pior.
   Caio num baque surdo. Quase não ouço nada.
   Penso ter ouvido a risada de Jolie em algum lugar perto daqui.
   Fecho os olhos. Náuseas.
   O desespero toma conta até mesmo de minha voz. Mas eu não me importo. Preciso e quero achar Jolie com todas as minhas forças.
   A realidade volta mais rápido. Como posso encontrar Jolie assim?
   Tudo dói, mas sequer arrisco um movimento. Ele também se senta. Eu não percebi que ele havia levantado.
   Observo a floresta, calma, com cara de amanhecida. Ainda é bonita, apesar de tudo.
   - Sequer sabemos a direção de onde ela foi...levada. - ele diz a última palavra como se ela deixasse um gosto ruim em sua boca. - Precisamos procurar pegadas. Pistas… ou… sei lá. Correr por aí pode ser perigoso.
   Ele me encara por alguns segundos, sua respiração pesada. Não consigo ir fundo em seus olhos quando ele usa aquela lente.
   Na parte rasa até onde alcanço, penso ter enxergado algo. Algo que meu olhar provavelmente revela quando encaro Jolie. Instinto de proteção, carinho. Algo como…
   - Minha cabeça dói. Demais. - Ele leva a mão até onde recebeu o golpe da pedra e faz uma careta. A pedra continua a alguns metros dele.
   - O que faremos agora? - Não consigo pensar em nada. Me sinto inútil.
   Como ela pode estar se sentindo?

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