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Atualmente, 25 de fevereiro

Philip estacara. Eu também. O tempo está parado. Estou em completo choque.
   Annie está na cidade. A irmã de Philip.
   Minhas mãos flutuam em torno de minha cintura. Me sinto vulnerável.
   Philip encara a TV enquanto o homem encerra a manchete e continua com outras notícias. Não registro o que ele diz. Tudo o que Philip faz em seguida é pegar o pacote e seguir até a porta.
   Antes de o seguir, coloco de volta minhas lentes. De relance, ainda encaro a TV, me perguntando se um dia ele mostrará alguma foto de Lily.
   Por um segundo, desejo que ele mostre. Só para que eu saiba onde ela está.
   - Adeus, então - Philip diz, sem se virar.
   - Adeus, mi amigo.
   Não me despeço. Estou indo embora, deixando a cidade e Lily. Não sei o que pensar. Resolvo não pensar em nada até lá.

Apesar de o pacote parecer bem pesado, a moto, aparentemente, carregou a mesma gravidade que carregara quando viemos. Já é final de tarde quando adentramos a floresta que circunda o jato. A caminhada, apesar de cansativa, foi reconfortante. A natureza me acalma.
   O jato acaba de aparecer em minha frente quando Jolie e Michael vêm correndo em nossa direção. Seus rostos apresentam ansiedade.
   - Lily? - Jolie pergunta. Nego com a cabeça.
   Os dois piscam, decepcionados. Jolie continua parada e Michael volta para o jato. A deixo ali, desejando um banho para tirar de mim esse peso. Quando passo por ela, sinto, por um segundo, que nossas almas se agarram, querendo estar juntas.
   Parece que os dois são tudo o que tenho agora, e mesmo assim sinto que milhares de coisas estão faltando. Estão desesperadamente desaparecidas. Isso me deixa muito cansado.
   Quando a água da torneira começa a cair em minhas mãos, sou engolido pelo som até escutar um completo vazio.

Jolie carrega um cheiro bom, como um perfume borrifado no ar, suavizado pelo vento. Senti esse cheiro, mais forte, quando a encontrei na floresta. Ao seu lado, em seu quarto, ela respira devagar. É de madrugada.
   Michael também coloca seus braços em minha volta quando vou até lá, logo depois de deixar o quarto de Jolie, e, ali, me esqueço por alguns minutos.
   Sinceramente, não sei mais o que sinto. Por nenhum dos dois. Me perdi em algum momento.
   Mas antes de colidir com qualquer pensamento, me agarro a uma certeza. Hoje, assim como sempre foi, ambos são meus irmãos. Me amam, assim como eu os amo. Nada pode impedir isso.
   Nada mudará, eu espero.

Algo mudou em Philip desde a notícia. Dá para se imaginar. São anos atrás de sua irmã. Eu imagino que em algum momento se perca a esperança. Ou é assim no começo? Porque é assim que eu me sinto - aos poucos perdendo a esperança.
   Pensando bem, algo também mudou em mim. Após algumas décadas de procura, a irmã dele reapareceu. Isso significa que ele não vai desperdiçar a oportunidade. E vai precisar de nós. Seja lá o que ele pretende fazer.
   No dia seguinte, à noite, Philip nos chama até a sala e nós jantamos juntos - alguns pães com mortadela -, assistimos a uma série de TV dos anos 90 e conversamos sobre Annie. Na verdade, sou eu quem toca no assunto. "Vamos ajudá-lo como pudermos". Ele apenas diz que irá pensar em algo. Nos conforta dizendo que tem aliados dentro da base. Respiro fundo. Nós três.
   Estou em meu quarto. O livro Viações e telecomunicações de 2000 está no chão. Eu o joguei na parede há poucos segundos, quando me frustrei porque não entendia aquele assunto em específico.
   Alguém bate na porta. Três batidas. Fico surpreso. Quem será? Levanto, chuto o livro para o canto e abro a porta. Os olhos de Philip estão sonolentos.
   - Ei - ele diz, com uma voz baixa.
   - E aí.
   - Cara, você tá lendo algum livro meu?
   Olho para a direita. O livro está quieto e triste no canto.
   - Acho que não.
   Ele assente.
   - Só senti a falta de alguns…
   Me pergunto com que frequência ele lê sobre viações.
   - Enfim… Eu tava pensando… Você sabe que nós vamos…
   - Ter que buscar Annie?
   Ele desvia o olhar, engolindo o que ia dizer. Me sinto culpado.
   - Cara, claro que sei. Vamos fazer isso - continuo, falando baixo. - Você nos deu um abrigo.
   - Eu tenho aliados lá dentro. Nós podemos…
   Ele não termina. Eu continuo por ele.
   - Vamos dar um jeito de entrar. Somos irmãos agora.
   Não sei se me precipitei. Acredito que não. Philip é meu irmão agora. Consequentemente, Annie também é.
   - Agora vamos dormir, tudo bem?
   - Tá, vou tentar. - Ele pensa um pouco. - Boa noite.
   - Boa noite, Philip.
   Fecho a porta. Deixo o livro ao lado do travesseiro quando me deito.
   Eu já imaginava que teríamos que entrar lá, e a ideia é realmente assustadora, mas por algum motivo não estou assustado. Quer dizer, estou longe da minha irmã há semanas. Philip está há anos. Ele precisaria de ajuda.
   Em algum momento Lily vai alcançar a cidade. Pode não ser hoje ou amanhã, mas ela vai. Agora que conheço o lugar, conheço o Carvoeiro e sei que temos aliados, posso ter um pouco mais de expectativa sobre a chegada de minha irmã. Logo ela estará conosco.
   Me viro para a parede. A cidade em si não é assustadora, mas estar com Urbanos é. E logo vamos ter que chegar ainda mais perto. Mas é para um bem maior - salvar uma das nossas.
   A ideia é amedrontadora, preciso confessar. Mas se trata de princípios. Estamos vivos graças a Philip. Espero que logo eu possa dizer que a irmã dele também está viva graças a nós. Aí estaremos quites. Mas ele não vê isso como uma dívida. Eu também não deveria ver.
   Meu coração quase para quando a porta se abre. Me viro e encaro a silhueta de alguém. Eu facilmente reconheceria qual dos dois se encontra ali se eu não estivesse cego. Não consigo enxergar além da confusão que está instalada.
   Quando a figura se aproxima, vejo que é Jolie. Logo em seguida reconheço seu cheiro.
   Antes de se sentar na cama, ela fecha a porta. Perto de mim, ela segura minha mão. O único som que ela faz é o de sua respiração. Não sei se eu também respiro.
   Ela se senta tão perto que quase está em meu colo. A única coisa que enxergo são o amarelo e o verde de seus olhos. Eles também pulsam ao ritmo de sua respiração.
   E ela dá um último suspiro antes de chegar perto. Ali percebo que eu também respiro, e que estou vivo. Minha respiração se iguala às batidas de meu coração. Respiramos juntos.
   Me perco nas batidas assim que seus lábios encontram os meus.
   Minhas mãos encontram sua perna direita que está verdadeiramente próxima a mim. Ela faz movimentos sutis e calmos. Doces, como ela. Seu beijo tem um gosto único e delicado. Como todas as pinturas que já fez, me conduz como se utilizasse pincéis. Me colore em pequenos centímetros de pele. Tudo que ela faz é com delicadeza e sinceridade. Como arte. Jolie é arte em todos os sentidos.
   Eu a agarro com tudo o que tenho. Me sinto vivo. Também quero pintá-la, mas não sou o artista. A deixo ali, fazendo o que quer fazer comigo.
   Quando ela se afasta, não abre os olhos, mas sim abraça meu tronco e fica ali, por vários minutos. Nosso primeiro beijo. Espero que tenha sido especial para ela como foi para mim.
   Respiro devagar enquanto a abraço. Quero nunca sair daqui. Minha pele formiga por toda sua extensão.
   Em algum momento ela se levanta, e devagar me beija na bochecha. Então ela vai embora.
   No caminho, ela deixa um rastro de cheiro e cores no ar. Enxergo todas as cores possíveis se misturar com o ambiente. Quando olho minhas mãos, elas brilham, como glitter.
   Jolie é arte, e quero ser um de seus quadros.

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