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Atualmente, 20 de fevereiro

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Eu flutuo.
   Boio num mar de escuridão. A sensação é peculiar - ao mesmo tempo que minha consciência está ali, ela não está.
   Sinto o vento me cercar, mas nada além disso. É como ter asas e voar. Meus pés e minhas mãos levitam. Por mais que eu tente abrir meus olhos, eles não se movem. Minha boca não profere uma palavra. Meus ouvidos não captam nada além de um chiado, como uma ventania fora de uma casa, as janelas estão fechadas. Nada se passa pela realidade. Não sei como a encontrar.
   Minha cabeça está levantada. O ar aqui é puro. Todas as dores sumiram.
   Horas se passam nessa inconsciência. A sensação é a mesma.
   Então, uma voz surge no fundo do corredor escuro. Abafada, quase inaudível. Assim como todas as vezes que minha consciência se esvaiu, a voz clama por meu nome. Ainda flutuo, mas parece que estou descendo, parando de voar aos poucos. E a voz ganha força.
   O vento começa a ir embora, eu começo a alcançar o chão e, a voz, mais nítida.
   De certa forma, sinto que estou deitado no chão duro e, no mesmo segundo, ouço a voz de Michael conversando comigo. Quero responder, mas ainda não tenho meus sentidos.
   Ele sussurra algo. Não consigo decifrar o que é. Em pé na escuridão, ainda sem encostar no solo, sinto meus fios de cabelo desembaraçarem. Sinto pequenos dedos dançando por ali.
   No coma que me encontro, levo a mão até minha cabeça. Não encontro nada, mas ainda sinto dedos alheios ali. É Michael. É ele quem desembaraça meus fios.
   - Acho que logo você acorda.
   Sua voz está doce e quieta. Como tudo continua escuro, fecho meus olhos, na esperança de que eu o ouça melhor. A sensação dos dedos em meus cabelos fica mais viva. É a única coisa que sinto enquanto flutuo de olhos fechados.
   - Jolie tá com saudade. Eu também.
   Eu também, Michael.
   Por um momento, meus pés tocam o chão. Aproveito para levar minha mão de verdade até meu cabelo. Com muito esforço e lentidão, encontro os dedos dele. No momento, Michael é como uma âncora entre mim e a realidade. Estou entre os dois.
   Seus dedos soltam os meus e eu volto a flutuar.

Ainda estou ouvindo a voz de Michael quando a realidade começa a voltar. Aos poucos vou recuperando os sentidos. Um frio iminente se espalha por meu corpo. Sinto o chão duro. Meus olhos começam a enxergar a escuridão deles mesmos fechados. Ouço uma chama crepitar e tentar enviar calor a quem estiver em volta dela.
   Então abro os olhos.
   A floresta está escura. A noite não tem estrelas pois o céu está nublado. As árvores balançam e tombam para a mesma direção do vento. Uma fogueira está acesa a dois metros de mim. Em volta dela, duas pessoas estão deitadas, dormindo. Uma está sentada de costas para a fogueira. Michael.
   Me sinto fraco e sem energia. Tudo o que faço é soltar um suspiro profundo para chamar sua atenção. Quando ele se vira, se torna uma silhueta. Ele precisa se aproximar para que seu rosto tome forma.
   - Ei… Tudo bem? Tá se sentindo bem?
   Tudo o que consigo fazer é assentir. Minha nuca roça a mochila em que estou deitado e minhas mãos agarram o edredom que me cobre.
   Michael pega minha mão.
   - Você tá gelado. - E ajeita o edredom para que ele cubra até os ombros. Minha visão gira um pouco. Não sinto mais dor nenhuma.
   Nenhuma.
   Começo a vasculhar meu corpo com a mão direita. Onde estão meus machucados? Por que nada dói? Faz quanto tempo que estou dormindo?
   - Quanto tempo… - tento falar, mas acabo engasgando. Minha voz está rouca.
   - Não faz esforço - ele me pede. Engulo em seco.
   Sou pego de surpresa por um pensamento. O que foi aquilo?
   Eu… flutuei. Simplesmente.
   Encaro Michael.
   - Dois dias.
   Pisco, confuso. Ele continua.
   - O prédio inteiro virou pó. Quase ficamos soterrados. A ventania durou uns dez minutos. A gente teve que fugir. Parecia um furacão. Foi muito forte...
  - O que aconteceu comigo?
  - Um… A gente voltou pra te tirar dos escombros. Vasculhamos por tudo, você tava bem no centro do prédio. No meio da explosão.
  - Eu estava debaixo dos escombros?
  - Tava, Klaus. Você tava todo machucado, mas respirava. A gente te trouxe até aqui, te lavou um pouco…
   Aperto o edredom. O quê?
   - Michael, como eu não tô morto?
   Ele me olha, um pouco confuso.
   - Niklaus, foi você quem causou a explosão. São seus poderes.
   E aquilo ecoa em minha cabeça.
   Eu já esperava que fossem. Os cortes na pele, a sensação de flutuar, o aperto no estômago, a maneira como meu corpo aguentou todos os machucados. São coisas que, de certa forma, a vovó me preparou para que chegassem.
   Mas eu jamais esperaria que elas, de fato, chegassem.
   Encaro Michael, sem dizer nada.
   Meus poderes.
   Isso é simplesmente impossível.
   - Não pensa muito sobre isso, tá? Você precisa descansar.
   Não me movo. Ele está certo, eu preciso descansar.
   Ele me dá um pouco de água e eu consigo me sentar. Estou cansado. Observo a fogueira dançante enquanto ele me olha.
   - Isso é meio chocante - ele sussurra. - Você ficou tão machucado, mas se curou tão bem… Eu fiquei com tanto medo… - Ele para de repente e engole o que ia dizer.
   Encontro sua mão que estava em seu colo. Ele não se move.
   Olho para Jolie. Como foi para ela saber disso?
   - Talvez…
   Encaro a garrafa azul em minhas mãos.
   - A gente precisa encontrar a Lily. - E volto a o fitar.
   Sua expressão não muda.
   - É nosso próximo passo. - Ele pisca algumas vezes ainda me olhando. Sua respiração é constante. - Vai dormir.
   Ele se levanta e vai até algumas latas vazias. Enquanto ele as organiza, eu o observo, me questionando se realmente vou conseguir dormir.
   Quero dar nosso próximo passo. Mas como? Como eu vou conseguir caminhar sabendo o que sei agora? O quão perigoso eu me tornei? De quantas pessoas eu chamei a atenção para o prédio que se tornou cinzas?
   Se eu não morri hoje, quando vou morrer?
   - Michael - digo, quase chorando. Ele vira para trás. - Não consigo dormir.
   As lágrimas começam a sair quando ele se senta ao meu lado. Estou assustado. Com medo. Triste. Com saudades.
   Quero que isso acabe.
   Choro silenciosamente, respirando devagar, enquanto me deito em seu colo e volto a sentir os dedos desembaraçando meus fios.
   Desde que deixei minha casa, tudo parece acontecer rápido demais. Com intensidade demais. Nada mais é fácil. Tudo parece ser explosivo e destrocivo.
   Perdi minha casa. Minhas lembranças. Perdi minha irmã, e depois a outra. Segurei na mão de Jolie e senti as coisas flutuarem. Segurei na mão de Michael e me senti seguro. No momento, é disso que preciso agora. Segurança.
   Por isso, procuro seus olhos. Eles fitam a fogueira. Sua mão não perde o ritmo. Naquele momento, reconheço: quero Michael aqui, me dando segurança. E vou fazer de tudo para que eu não o perca.
   Também quero Jolie ali, ao meu lado, e depois quero Lily, que logo também vai estar. E agora quero Philip. Ele me ajudou a salvar minha irmã, e vai me ajudar a salvar a outra. E logo, vamos salvar a irmã dele. Quero ser a segurança deles, e eles a minha.
   A partir de agora, quero estar seguro. Um lar. Quero poder respirar e amar as pessoas que me amam.
   Fecho os olhos, sentindo que logo vou dormir. Por hoje, preciso descansar.
   Me agarro a essa sensação enquanto o choro passa. Ele não faz nenhum barulho. Ele não se move. Ele, ali, me protege.
   Michael também faz as coisas flutuarem.

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