Atualmente, 15 de março
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Encaro o negro.
Não sinto a gravidade. Não sinto meus braços, pernas. Nada - fisicamente.
Sinto múltiplos sentimentos ruins de uma vez só - sinto o desespero que senti quando vi vovó cair aos meus pés; sinto uma falta de ar desesperadora de estar preso dentro do esconderijo; sinto tristeza e saudade do Carvoeiro; sinto que estou preso em um sentimento duplo por Michael e Jolie; sinto que não posso ter nenhum dos dois.
Sinto tudo isso de uma vez me esmagando e quebrando todos os meus ossos.
Grito.Acordo com um grito abafado na garganta. O que eu percebo primeiro é o aperto esmagador em meu peito.
Respiro ofegante. Os sentimentos ainda estão vivos em minha cabeça. Estou desesperado. Não enxergo nada. Não sinto nada no meu corpo.
“Socorro” é tudo o que consigo pensar.
Acalme-se.
Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro.
Sinto o desespero escapar por minha respiração aos poucos. Sou tomado pelo senso de gravidade - estou sentado em algo macio. A cama.
Meus sentidos voltam aos poucos. Sei que estou na cama. Encaro um negro porque ainda é noite. Estou bem. Minha respiração vai se freando.
Me deito outra vez. Os piores sentimentos que já senti em toda a minha vida acabaram de vir à tona em meu pesadelo. Não entendo o que foi isso. O sonho durou, no máximo, dois segundos, e, dentro desse tempo, senti tudo o que minha cabeça armazenava como sentimento negativo. Eu não podia me mover, respirar, sentir meu corpo - como se estivesse morto no colo de meus piores demônios.
Sinto um calafrio.
Aos poucos, me acalmo mais. Só um pesadelo. Ainda sinto o peso de algo ruim em meu peito, como se algo ruim estivesse prestes a acontecer.
Não.
Depois de alguns minutos, os sentimentos ruins não passam de lembranças.
O que sinto, porém, é uma angústia. Uma hesitação. Algo ruim vai acontecer.
Mesmo receoso de ter o mesmo pesadelo, consigo dormir.
Adormeço, incomodado.Quando acordo, a sensação ainda não passou.
Acordo primeiro que Michael essa manhã. Me sinto mais pesado que o normal. Um peso a mais adicionado em meu peito. Me sento na cama e encaro meus pés, descalços. Não sei dizer que sensação é essa, nem de onde veio. Apenas espero que passe logo. Que não signifique nada.
O dia amanheceu nublado. Não vi nenhuma nuvem de madrugada. Agora, porém, o céu se encontra cinza.
Sei de duas coisas: está muito cedo, ninguém está acordado, tenho que dormir; não conseguiria dormir nem se eu quisesse.
Me sento em um dos assentos da “sala”. Outrora estive aqui com Jolie, discutindo. Sinto um calafrio.
Fico ali por bastante tempo, apenas olhando para fora da janela. Minha mente se encontra apagada. Tento não ativá-la por algum tempo. É quase uma paz quando não estou pensando demais.
Por um segundo, me pego pensando no abraço de Jolie. Parece que alguns dias pertencem a ela; outros, a Michael.
A porta do banheiro se abre, Annie aparece. Ela me encara. Vejo uma garota um pouco melhor da aparência que teve por dias após ser libertada. Seu cabelo parece mais brilhante - um loiro pulsante. Seus olhos castanho-azulados me encaram de volta. Sua pele branca brilha mesmo no sol ofuscado da manhã.
Não sei dizer se é algo visível, mas todo meu corpo se retesa. Não sei o que fazer ou dizer. Me lembro da primeira vez que a vi - na cela, caída no chão, parecendo frágil e destruída. Aqui, agora, parece melhor, e é um alívio. Está com a aparência exata de alguém que está longe de pessoas horríveis. Sei disso porque Philip, Michael e Jolie carregam essa mesma aparência. Eu carrego.
Ela aguentou muito mais do que eu tive que aguentar até agora.
- Bom dia - digo. Me surpreendo com minha própria voz - ela parece mais rouca que o normal.
- Bom dia - ela me responde e sorri. Seus olhos brilham mais. Ela olha para pontos aleatórios, e é divertido, até certo ponto, a ideia de que ela também não sabe o que fazer.
Por alguns segundos acho que ela vai se virar e voltar para o quarto, mas ela se direciona até a sala e se senta ao meu lado. Ela me encara. O sorriso não saiu de seu rosto. Seus dentes são branquíssimos. Ajusta seus fios dourados. É muito bonita.
Digo a primeira coisa que vem na cabeça.
- Está tudo bem?
Ela não parece surpresa com a pergunta. Carrega um ar vagamente gracioso. É reconfortante.
- Por agora, está. - Uma pausa. - Tudo tem estado melhor agora.
Assinto, sem graça. Ela é graciosa. O contraste entre nós é perceptível.
- Nunca agradeci vocês - ela continua, cutucando as próprias unhas. - Obrigada pelo que fizeram.
Assinto, outra vez.
- Não tem problema. - Balanço a cabeça. - Quer dizer, nos protegemos, não? Temos que nos proteger.
Ela assente. Parece mais apropriado quando ela o faz.
Escuto passos, e nós dois nos assustamos. Michael deixa o quarto e nos vê. Ele está nitidamente surpreso com a visão. Annie deixa a cabeça baixa, e eu o encaro. Suas sobrancelhas se franzem.
- Annie está agradecendo.
Ele sorri de boca fechada. Assente a ela.
- Somos irmãos, agora.
Ela olha para ele e sorri.
- Me desculpa por estar tão ausente. Vou me fazer mais presente - vou tentar - acrescenta.
- Já é o bastante - responde ele. Ela me olha.
- Ele sempre sabe o que dizer - digo, algo que estou cansado de saber.
Alguns segundos de silêncio, até que ele entra no banheiro, de cabelo bagunçado e roupas amarrotadas.
- Vou acordar Philip - ela diz. Assinto vagarosamente e ela sai. Fico ali, tentando não recapitular a conversa. Mas é em vão.
Essa é a primeira vez que Annie se direciona a mim. Ela parece, mesmo que pouco, confortável agora. Se sente segura, e isso me faz muito bem. Aos poucos, as coisas vão se ajeitar.
Resolvo observar todos se levantarem naquele mesmo lugar. Jolie se senta ao meu lado, Michael vai até a cabine principal e os outros dois resolvem ficar em seu quarto, mas de porta aberta.
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Rural
Teen Fiction"Então eu também me viro e deixo ela para trás. Deixo as lembranças. Deixo minha irmã, deixo meu marido, deixo toda a minha vida. Deixo tudo. Bem, quase tudo. Porque o que sobrou ainda estou prestes a perder. Meu filho." Depois de ter sua vida e fam...