1

52 10 3
                                    

Atualmente, 10 de fevereiro

*--*--*--*--*--*--*--*

“...no meio da chuva e do vento, Sara andava sem rumo. Era difícil saber se havia muitas lágrimas em seu rosto. A chuva já havia encharcado demais.
   Como Alec fora capaz de fazer aquilo? Aparecer no meio da festa, fingir que nada havia acontecido e ainda cumprimentá-la de mãos dadas com ela…
   Ela.
   Sara definitivamente odiava Rebecca. Ela foi fria, aceitar o pedido de Alec, mesmo sabendo que Sara era perdidamente apaixonada por ele. Esse pensamento só doía ainda mais no coração de Sara.
    No meio do caminho, ela encontrou uma praça. O primeiro pensamento que não se tratava daquele baile depois que saíra de lá. Sentou-se em um banco em uma das extremidades do local. Apesar de ser noite, havia postes iluminando todo o lugar.
   Era grande, com bancos de pedra com propagandas nos encostos. Alguns relevos no chão com grama baixa e plantas coloridas se espalhavam por ela. Os postes eram de cor cinza, e um cinza mais escuro ainda devido à noite. Respingos de chuva brilhavam sobre a luz dos postes e sumiam no escuro, como se chovesse apenas naquela área.
   Os pingos eram grossos e pesados, como pedras gélidas caindo sobre os ombros e os cabelos loiros de Sara, mas ela não se importava. Não se importava de ser noite, de estar escuro, de estar frio nem com a possibilidade de ela adoecer. A dor em seu coração era profunda. Não podia fazer nada. Nada a não ser chorar. E foi o que ela fez.
   Após alguns minutos de soluços incessantes, Sara avistou uma silhueta pouco à frente, logo depois da rua. Suas mãos alcançaram os olhos em um gesto de disfarce, mas a sombra a fitava.
   O choro, então, passou. O coração passou a bater forte. Um pânico inicial tomou conta de seu corpo. Tinha muito medo de ficar sozinha e avistar estranhos. A sombra atravessava a rua e se aproximava, e todo o pânico passou a ser medo.
   Que sumiu, assim que ela ouviu a voz. Aquela voz.
   - Ou eu te seguia e levava pra casa, ou você morria resfriada.
   Sara não podia acreditar em seus ouvidos.
   Se inclinou mais para perto. Agora Sara tampouco acreditava em seus olhos.
   Era Tristan...”

Encaro as reticências no fim da frase. Não entendo nada. É o que sempre acontece quando termino algum livro.
   O que Tristan faz ali? Como ele está vivo? Sara ouviu dos pais de Tristan as palavras “ele morreu ontem” há três anos atrás. Mas de repente ele aparece vivo. Isso é um pouco confuso.
   O livro em meu colo se chama Nuvens de Sangue, de Joseph Kassmare, cujo único livro que conheço dele é esse em minhas mãos. A capa é um azul-escuro, da cor do céu à noite, com nuvens cor-de-vinho soltando gotas vermelhas, que caem no título do livro logo abaixo.
   O sofá é até confortável. É de couro. Estou com uma camisa azul, com uma frase escrita em japonês no meio (大阪), um calção cinza e estou descalço. Vovó me ensinou que uma de minhas poucas obrigações aqui no esconderijo é ter higiene. E chinelo no sofá não é algo higiênico.
   Encaro um quadro do outro lado da sala - quatro garotos, bem pequenos, roupas diferentes. Todos eles com 100 anos de idade, menos o da esquerda. Ainda tinha 99.
   Michael, Lily, Jolie e Niklaus, eu, juntos, numa campina. Já faz muito tempo, mas me lembro. Uma câmera parecia algo inventado por uma espécie de Deus. Registrar momentos, assim. Já me acostumei, de qualquer jeito. Quando vovó disse que ia “tirar uma fotografia”, ninguém soube o que fazer. Por isso Michael está de olhos fechados, Lily está dando risada, Jolie está olhando para o alto e eu estou agachado.
   Agora, mais de 60 anos depois, nós ainda nos parecemos.
   Vovó me explicou que, apesar de sermos mais velhos, envelhecemos mais devagar que os outros humanos do mundo. Isso condiz com 100 anos de idade e ainda termos a aparência de crianças com menos de dez.
   Normais, claro. Crianças normais. Somos Rurais.
   Olho para o quadro e penso em quem somos agora. Posso dizer que, com mais de 160 anos de idade, temos a aparência de jovens beirando os 20. Não sei diferenciar. Tudo o que vi foi na TV.
   Michael ainda se parece com o garoto de olhos fechados. Alto – o mais alto de nós quatro -, cabelos negros e pouco ondulados. Um nariz grande e pouco torto, com o olho esquerdo da cor castanho e o direito da cor verde-amarelado. Sua pele é um branco meio pardo. Ele é bonito.
   Lily está rindo. Acho que ela gosta da própria risada. Uma garota da minha altura, pele parda, de olhos: esquerdo, castanho claro, direito, castanho escuro, cabelos negros e ondulados, curvas no corpo e maçãs do rosto bem marcadas, e, além de tudo, covinhas nas bochechas quando sorri.
   Jolie está sempre pensando e de cabeça para cima. Magra, porém, com curvas bem marcadas nos braços e no tronco, pequena, de pele parda, cabelos grandes e lisos, olho esquerdo verde, o direito verdadeiramente amarelo. As sardas no seu rosto são bem marcadas. Não sei porque, mas reparo bem eu seus lábios - apesar de não serem muito carnudos, têm traços curvilíneos para cima e nos lados, fazendo eles parecem incrivelmente atraentes. Afinal, ela é…
   Não sei bem por que eu estava agachado. Tenho pele clara, sou o segundo mais alto de nós quatro, meus cabelos são negros e ondulados, caindo fielmente em volta da minha cabeça. Os fios fazem caminhos para os lados, como ondas sonoras, ou uma sequência de DNA. Sou magro, ainda com alguns músculos destacados, mas apenas pelos meus anos de criança trepando em árvores. As veias demarcam caminho em meus braços e mãos, pernas e pés. Meu olho esquerdo é castanho e o direito é verde.
   Isso foi alguns dias antes da vovó morrer. A foto.
   Me deito. Olho para o teto branco. A sala é um quadrado grande de, mais ou menos, dez metros até cada parede. Nela, um sofá de couro marrom-escuro no centro, uma estante pequena com uma TV e um videogame, uma mesa de vidro entre o sofá e a estante e uma escrivaninha quase empoeirada no canto. Em vista do sofá, à esquerda, há uma porta de ferro com aqueles grandes cadeados – quatro, no total. Atrás, a pequena cozinha, e, ao lado da geladeira, a grande Porta Escape. À direita, o pequeno corredor que dá nos quartos e o banheiro – cinco portas, duas na esquerda, duas na direita e uma na frente. Uma lâmpada branca pende em cada um dos cômodos.
   De segunda a segunda minha rotina é a mesma. Eu acordo, arrumo meu quarto e vou para o banheiro, que fica ao lado dele. Mergulho um pouco na água, escovo meus dentes, me encaro no espelho para verificar se ainda tenho o mesmo rosto e saio. Vou para a cozinha. Se sou o primeiro a acordar, arrumo as coisas para o café da manhã.
   A mesa nunca está pronta. Sempre sou o primeiro a acordar.
   A internet é mais para pesquisas e leitura. Pelo menos para mim.
   Um tempo depois que a vovó faleceu, Michael estudou para poder nos dar aulas à tarde. Depois de alguns anos, aprendemos tudo o que as escolas ensinavam, então paramos de ter aula. A cada quatro anos, Michael nos ensina um pouco mais sobre história. O que aprendo daí em diante é nos livros.
   No começo, eu tinha muito medo de sair daqui de baixo. Agora, minhas saídas semanais são sempre cumpridas. Fui ensinado pela vovó que sair para fora é muito perigoso e deve ser evitado. Depois de tanto tempo preso, parece que o perigo real mora aqui dentro.
   Quero escalar uma árvore bem grande, agora mesmo.
  Às vezes, imaginar que aqui dentro é fechado e que estamos abaixo do solo me tira o ar, mas os tubos de ventilação impedem que falte, realmente, ar aqui dentro. Todos os dias, desde que me conheço, vivi aqui, e a ventilação nunca falhou.
   Me levanto. Provavelmente sou o único na casa que anda descalço.
   O corredor tem paredes de um vermelho claro, e parece sempre estar cheio da presença de todos, considerando que quase nunca saímos dos quartos.
   As duas portas da direita dão entrada para os quartos das meninas. As da esquerda, para o meu e o de Michael. Mantemos sempre as portas abertas por insegurança.
   Um dia depois que a vovó morreu, as portas se fecharam.
   Ela costumava me contar que nossos quartos eram nossas bases, e que, quando precisássemos recarregar nossas energias, era para lá que deveríamos ir. Hoje sei que é porque cada quarto tem nossas peculiaridades. Eu ficava confuso porque ela dormia no canto da sala, em um colchão velho. Acho que é por isso que ela se foi primeiro que todos nós. Ela não recarregou as energias.
   Michael está deitado em sua cama, ouvindo algo de alguma banda. O quarto é cheio de discos e pôsteres. Eu adoro música, mas não conheço a maioria das pessoas grudadas nas paredes dele. Acho que está ouvindo algo do Nirvana.
   O quarto de Lily é arrumado e limpo, quieto, e não tem muitos detalhes. Isso não significa que ela não tem. Ela não está ali e a luz está apagada.
   O quarto de Jolie é enfeitado com quadros e flores. Ela é a artista de nós quatro. Quando espio pela entrada, ela encara um dos quadros, batendo o pé ao ritmo da música.
   Quero continuar olhando. Desvio o olhar.
   Meu quarto está cheio de livros - cheio. De Virgínia Woolf a Julie Plec. Só porque Julie está em meu quarto não significa que eu goste dela. Não me conformo com o final de The Originals até hoje. Por que eu deveria?
   Respiro fundo e adentro o quarto de Michael. O ar muda de forma, cheiro e peso. A música fica mais alta. Ela sai de uma pequena caixa com dois orifícios no canto. Acho que é um CD.
   Ele usa uma camisa laranja, uma calça moletom marrom e está descalço. Está de bruços e olhos fechados.
   Quando pulo em sua cama, ele abre os olhos e me encara, surpreso e sonolento.
   - Estava dormindo? - pergunto.
   - Talvez. - E volta a fechar os olhos.
   Encaro o teto. A lâmpada atrapalha um pouco minha visão. Não é nada demais.
   Perto dele, sinto um contraste gigantesco, mesmo que todos digam que somos parecidos. Não acho isso. Acho que Michael é muito mais bonito que eu. Ele se parece com aqueles caras dos livros com charme e astúcia, e eu provavelmente sou o cara que lê livros, no canto. Sou o cara do canto.
   Me arrastei até o quarto. Estou bem desanimado, e reconheço esse sentimento: tédio. Tenho várias coisas para fazer, mas não quero fazer nada. E sei exatamente o que sempre penso quando entro nesse estágio…
   Quando vou sair daqui?
   De todos os que moram comigo, aqui em baixo, sou quem mais tem medo de subir até lá, mas, às vezes, me parece a única alternativa.
   Já se passou tanto tempo desde que vivo a mesma rotina e com as mesmas pessoas que tudo parece estar se transformando no estrangeiro. Não sei mais o que fazer durante o dia, e os moradores daqui parecem ainda estranhos. Os corredores têm o mesmo caminho, e as mesmas cores, e as mesmas funções…
   Não quero mais viver aqui.
   Já faz tanto tempo que comecei a pensar sobre isso, sobre não morar, que me acostumei.
   Nessas horas, gosto de fingir que estou em algum dos livros que li, e que estou longe desse lugar.
   Fecho os olhos. Imagino as paredes se transformando nos mares, e o teto num céu estrelado. Imagino o vento passando por mim e me fazendo sentir o mundo, me sentir vivo.
   A música vai adentrando mais afundo em minha mente. Estou afundando na cama e fugindo desse lugar.
   A guitarra vacila a nota em um ritmo constante. Que música boa.
   Michael está a quilômetros de distância de mim.
   Dou um pulo e flutuo, porque o mar funciona diferente do chão comum.
   E dou algumas risadas.
   E flutuo.
   Michael encosta em meu braço e sou acordado.
   - Vem cá, a música está atrapalhando seu sono?
   Abro os olhos. Me sinto como uma massa pesada na cama.
   - Me desculpa… por dormir aqui…
   - Não tem problema.
   Ele se deita ao meu lado. Acho que compartilhamos do mesmo mal. Como não poderíamos?
   - Hoje é que dia da semana?
   - Quarta…não, quinta. Por quê?
   - Posso fazer o jantar hoje? - pergunto.
   - Claro que pode.
   E alguém abre a porta. Lily já chegou.
   - Olá, Mi… Ah, oi, meninos.
   Aceno. Lily chegou. Posso me animar um pouco descobrindo o que ela trouxe hoje.
   Me levanto. O que ela trouxe do lado de fora.

RuralOnde histórias criam vida. Descubra agora