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Atualmente, 6 de março

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O mundo todo parece tremer. Não é para menos. Todas as janelas viraram estilhaços, imagino eu. Como pó. Poeira de vidro cai em meu cabelo, enquanto eu, assim como todos aqui, estão cobrindo as cabeças, sem ousar respirar. Sei que parei de respirar, tenho certeza.
   Meu mundo agora é, numa única sintonia, caos. Por baixo do som do vidro se espalhando, ouço gritos e correria, do lado de fora. Estou sobre meus joelhos, de olhos fechados, e a mão de Philip está em algum lugar, agarrada a mim e a mais outras três pessoas. Não sei como isso é possível.
   Forço ar para dentro de mim, e não arrisco qualquer movimento. O problema, porém, é que sei que preciso me mover. Eles, seja lá quem sejam, vão entrar aqui, e não gosto de pensar no que acontecerá a seguir.
   - Meu Deus - Philip diz. Nesse momento, arrisco abrir os olhos e olhar para cima.
   O depósito está muito iluminado, enevoado pela poeira de cacos e areia. O teto parece querer cair sobre nossas cabeças. Todos estão de olhos semicerrados, assim como eu, tentando enxergar além da névoa.
   - São os cidadãos - Dylan, próximo a Philip, se levanta ao dizer isso. Ele corre para a janela mais próxima, à nossa esquerda. Aos poucos, o seguimos.
   Vejo cores passando rapidamente. Pessoas correndo, vindo de um pequeno morro, com grama escassa e um grande portão, que leva para mais árvores. Aos montes, elas entram, com expressões raivosas. Lanças, pedaços de pau, garrafas quebradas, armas e até facas nas mãos. Todas correndo em direção ao prédio. São os cidadãos em guerra. Jolie, ao meu lado, engasga com a poeira.
   - Eles não vinham tão cedo… - Dylan continua olhando. - Eles querem derrubar Martinez. São das cidades da região, até daqui. Querem guerra.
   Algo em seu tom me faz perceber que ele já esperava por isso. Como?
   - Do que você tá falando? - Michael pergunta.
   - É uma ditadura. O estado inteiro está sobre tutela dos militares, e isso tudo por causa dos rurais restantes.
   É isso. Isso é culpa nossa, então.
   Mas se eles estão contra os militares, então…
   - Eles estão do nosso lado? - pergunto. Uma mulher carrega um facão e o aponta para o prédio. Nunca vi algo assim antes.
   - É o que nós vamos descobrir. - E Philip começa a se despir, assim, de repente. O que ele está fazendo? Suas roupas normais começam a aparecer. Ele está tirando os trajes de soldado militar.
   - O que... - Dylan não termina. Uma faixa de luz ilumina seus cabelos castanhos. Os fios minúsculos que ele tem na cabeça. Seu olhar é de dúvida.
   O momento é estranho. Penso em duas coisas. A primeira é que meu ouvido parece zunir, mas não é só da audição que sinto falta - parece que todos os meus sentidos estão confusos, então tento listar rapidamente o que está acontecendo agora: estou num depósito empoeirado, o ar está pesado; meus olhos parecem arder; meus ouvidos parecem tapados por algum tipo de pano; minhas mãos soam; eu, assim como todos, encaro Philip, sem a menor ideia do que ele está fazendo - e é isso que me leva a pensar na segunda coisa: Philip não vai desistir do plano.
   - Eu vou lutar. Vou me misturar a eles, e lutar.
   Então eu olho pela janela - as pessoas estão entrando com muita convicção no lugar. Sem dúvida alguma. Não têm medo algum do que pode lhes acontecer. O que não entendo é como eu poderia dar esse luxo a mim mesmo - tudo o que trouxe comigo aqui foi medo e dúvida. Philip perdeu a cabeça?
   Não sei por que, mas encaro a expressão de cada um. Dylan encara Philip como se ele estivesse nu. Jolie respira fundo, não sabendo o que dizer. Michael olha para mim. É como se ele soubesse que eu o procuraria, em busca de respostas.
   Eu vim até aqui na intenção de andar por alguns corredores, de cabeça baixa, na esperança de sair vivo. Na esperança de resgatar a irmã de Philip. Eu não imaginava que seria jogado no meio da guerra. Nunca, em vidas, imaginei que correria, gritando, em busca de liberdade. Nunca.
   Philip, porém, já esperava por isso. Dylan também. Os dois já viveram guerras piores que essa.
   Os gritos lá fora parecem estar mais altos, e perto. Ouço estilhaços e bombas. Todos os tipos de sons que se ouviria no meio de uma guerra. Freio meus pensamentos, porém. Isso não é a guerra, ainda. Isso é só um movimento agressivo. As pessoas querem liberdade. A guerra é muito maior do que um grito por liberdade. É o grito pela morte daqueles que escravizam, e caçam.
   Num segundo, posso dizer que existe a vaga possibilidade de eu ser um dos escravizados. Já perdi dois daqueles que amo. Não, eu perdi mais. Eu nem mesmo conheci minha mãe, ou meu pai.
   Num outro segundo, percebo que também sou caçado.
   Mais um segundo e me lembro que Philip não recuou quando precisou me resgatar, ou resgatar Jolie.
   Num último segundo, ainda, percebo que faço parte dessa guerra. Ela é minha. E que só posso culpar as pessoas que vieram antes de mim por isso. Só posso culpar meus próprios pais.
   Olho para Michael, e para Jolie, e para Philip, e me lembro de Lily. Todos estes rostos enevoados pela poeira e pela luz do sol em contraste ao escuro do depósito. Eu não vim na intenção de batalhar. Mas agora vejo que é necessário. Então começo a tirar o uniforme. Não sou um deles.
   A guerra ainda vai acontecer, e, se existe uma maneira de me preparar para ela, é batalhando. É enfraquecendo meu inimigo. É a primeira vez que penso nos militares como inimigos. São apenas inimigos. Não existe conversa, ou tratado. É a maneira deles, ou é morte.
   Nesse momento, existe outra maneira. É a minha.
   E a minha maneira está dentro de mim. Me lembro da bexiga. Ela começa a inflar, devagar.
   Michael e Jolie também começam a se despir. Dylan balança a cabeça.
   - Vocês são loucos. - E olha para Philip. - Você tem certeza?
   - O que eu posso fazer? - Nesse momento, ele já terminou. Ele vira a cabeça de súbito em direção a algumas caixas, e anda até elas. De lá, ele tira duas pistolas escondidas. Ótimo. Ele vem até nós.
   - Algum de vocês sabe atirar? - pergunta, olhando para mim e Jolie. Nós somos a outra dupla.
   Ouço uma explosão alta do lado de fora. Não consigo segurar em uma arma.
   Não preciso. Jolie a pega, confiante. Lily a ensinou.
   - Ótimo - ele diz.
   Ótimo.
   Philip olha para Dylan, que já aceitou a mudança súbita do plano.
   - Certo. A essa altura, os militares já estão avançando. - Dylan olha para o lado de fora, pela janela. - Andem nas linhas de fundo. Procurem por Annie. Assim que a encontrarem, voltem pra cá. - Ele precisa falar mais alto para que o escutemos. - Daqui, eu os levo de volta pra fora. Não vou sair daqui.
   Todos assentimos. Penso em desejar boa sorte, mas não temos tempo. Me viro, olhando para a saída do galpão. Correr, procurar, voltar. Parece simples.
   - Boa sorte - diz Michael.
   - Vamos! - grita Philip.
   E Jolie parte na minha frente. Não tenho outra opção. Corro.
   A bexiga se enche mais um pouco.
   Quase não percebo que estou correndo até passar pela porta.
   Caos.
   O barulho está mais alto. O sol está escondido atrás de fumaças. Pessoas para lá e para cá. Mal parecem nos notar. Jolie segura a arma com as duas mãos.
   Noto tudo isso sem parar de correr nem mesmo por um segundo.
   Anoto mentalmente a seguinte frase: "De nada adianta tentar entender tudo o que está acontecendo. Você não vai conseguir."
   O chão apresenta buracos e declives até o primeiro prédio. Conforme me aproximo, os gritos e sons vão se tornando maiores. As pessoas vão passando mais rápido. A construção vai ficando maior.
   Estou perto o suficiente do aglomerado de cidadãos quando vejo sangue pela primeira vez. Saindo do braço de uma mulher, sentada, de cabeça baixa, que eu juraria estar morta, se tivesse tempo de descobrir. Continuo correndo, sem tirar os olhos de Jolie.
   Conforme vou chegando, paro aos poucos de distinguir elementos, como pessoas e armas, e só consigo enxergar meu caminho até o pátio aberto do prédio, que comporta as entradas para dentro.
   Como qualquer ser humano, estou respirando na intenção de manter meu corpo em movimento. Aqui, sou um alguém qualquer, feito de sangue, muito sangue, que a qualquer momento pode ser derramado. Me sinto assim, vulnerável, e meus pelos se arrepiam sempre que ouço um tiro - tiros esses que deixaram de explodir em meus ouvidos e se tornaram apenas minúsculas pancadas. Não estou ouvindo nada além de pequenos sons de algo se chocando em algo. Coisas se machucando.
   Continuo a correr.
   Quando passamos a concentração das pessoas, encontro um pátio aberto que, ao atravessá-lo, poderia encontrar outro campo enorme, iluminado e livre de árvores, que levam, lá ao longe, a outro prédio. Na parte de esquerda da construção, meu objetivo, as portas que me levam para dentro, vejo fumaça, fogo e pessoas de diferentes tonalidades, cores, peças de roupa e armas, todas em uníssono, olhando para a parte direita do prédio - onde estão os militares, igualmente uniformizados, com focos de fogo nos pés, armas na mão, fixando os olhos na parte oposta. Apontando para os cidadãos. Atirando.
   Me freio, e Jolie faz o mesmo. No centro do prédio, só vejo morte. É só o que há.
   Seguro o braço de Jolie, que segue até a mão, e uma arma. Ela pretende usar isso?
   Visualizo meu caminho: desço o pequeno morro, me mantenho à esquerda, alcanço a primeira porta e me escondo do caos. Procuro por Annie, e então a encontro, e saio daqui. É simples.
   Olho para Jolie.
   - Podemos sobreviver - grito para que ela ouça.
   - Nós vamos - ela diz, firme.
   É isso. Volto a correr. Alguém cai aos meus pés. Eu só pulo o obstáculo, quem quer que seja.
   Quando chego no pátio, estou perto demais da concentração de batalha, então sigo mais para a esquerda, olhando sempre para a direita.
   Fumaça demais. Sinto o cheiro devastador de sangue e fogo. Parece impregnar em minha pele.
   O que está acontecendo hoje, estará para sempre marcado em mim, como uma tatuagem. Uma tatuagem que cheira a incêndio.
   Olho para a direita. Vejo coisas voando, fumaça subindo, pessoas avançando e recuando, gritando e desviando de coisas. É coisa demais para registrar.
   Sinto a bexiga crescer.
   Esbarro em alguém.
   Caio, rolando por cima de algum corpo. Quem esbarrou em mim está logo ao meu lado. Um menino basicamente careca, de camisa amarela. Me olha com os maiores olhos que já vi em minha vida. Segura uma lança. Ele me encara tanto, de olhos castanhos inteiramente iguais, que penso que ele pode ter visto minha verdadeira identidade.
   Mas não é isso. É medo que vejo em seu olhar. Não é como se eu pudesse o machucar. É completamente o contrário disso.
   - Vai embora - grito, para que ele me ouça. Quero que ele volte pra casa.
   Ele só se levanta e corre para a batalha. Ele não vai embora.
   Ainda tentando entender o que aconteceu, Jolie puxa meu braço e me força a voltar a correr. Não existe tempo para registrar coisas. "Você não vai conseguir."
   Me lembro que Michael e Philip também estão correndo nesta bagunça, em algum lugar. Espero que ainda estejam correndo.
   Jolie me guia até a primeira porta. Não percebo o momento em que dou o último suspiro, até que a porta me engole, e Jolie a fecha. O baque parece silenciar tudo o que está lá fora.
   Antes de mais nada, freio meus pés. Continuo respirando, pesado, e, agora, consigo ouvir o som do ar entrando.
   Jolie está de costas para a porta, com a arma ainda inutilizada em sua mão esquerda, também lutando para respirar, de cabelo bagunçado, olhando para mim. Devo estar desse jeito, mas estou com as mãos nos joelhos, curvado. Os sons ainda são audíveis, mas, daqui de dentro, parecem mais mortais. Me faz não querer sair desse corredor, nunca mais.
   Corredor este, escuro. Algumas lâmpadas, portas, salas grandes, pequenas, espaços abertos e fechados, coisas grudadas nas paredes. Nada para se ressaltar. Minha mente está ocupada. Quando Jolie fala, sua voz parece abafada.
   - Vamos.

Não encontramos ninguém nos primeiros dez minutos de caminhada. Um homem alto e de barba grande, correndo, passa por nós, e parece nem nos perceber. Depois disso, mais corredores e silêncio. Silêncio, não. É mais correto dizer que o lado de dentro não emite barulho algum, não podendo dizer o mesmo do lado de fora. Em algum momento, vejo um quadro com um homem negro, alto e barbudo, grandes braços e expressão barbárie. Em baixo, o nome "Martinez" grafado.
   Mantemos passos firmes, sem intenção de dizer ou fazer algo além disso. Colocamos as cabeças, devagar, para dentro das salas, em olhadas rápidas. Sem precisar combinar, esperamos o outro terminar de vasculhar o recinto, para seguirmos juntos. Não quero que nos separemos.
   Jolie em algum momento pergunta "nada?" e eu só chacoalho a cabeça.
   O lugar segue um padrão de cores e portas. Está tudo muito parado, e eu estranho. Eu não esperava tamanha facilidade. Mas não está fácil. Posso ter me arriscado atoa.
   Não.
   Em algum outro momento, sinto que repetimos um corredor.
   Uma explosão faz o prédio tremer, e me assusto. Jolie também.
   Mais algumas salas e Jolie mantém a arma mais perto de sua cintura. O lugar parece enorme.
   Encontramos uma escada única, escura e reta. Nos olhamos, e seguimos.
   No segundo andar, menos salas e mais espaços abertos. Jolie segue pela direita, eu pela esquerda.
   Cada corredor terminado, o frio na barriga cresce. Cada explosão lá fora, um frio maior. É o medo de não encontrar ninguém aqui. Não consigo visualizar o que seria de nós se Annie não estiver neste lugar.
   A bexiga me incomoda. Parece querer crescer. A sensação é diferente da primeira vez, porém. Parece que ela só explodirá se eu quiser. Eu só explodiria novamente caso quisesse. É isso que diz minha barriga. Seguro a barra da camisa.
   Minha cabeça não parece funcionar, ainda processando tudo o que vi nos últimos quinze minutos. Somente quinze. Parecem horas. Flashes engraçados de expressões desesperadas e furiosas, como num filme.
   Coço a testa, e percebo que ali existe um machucado. Foi das outras vezes, ou me machuquei hoje? Não sei dizer.
   Jolie parece tão desesperada quanto eu. Não a culpo. É ela que carrega uma arma.
   Nossos passos parecem mais altos, mas ainda ouço a batalha. Parece a quilômetros de nós agora. Me faz nunca mais querer sair. Ao mesmo que não quero que estes corredores sejam infinitos, eu adoraria que fossem.
   De repente, Jolie para. Eu também.
   Vejo, no final do corredor, uma pequena sala, sem porta. Luzes azuis, algumas mesas. E grades. Como uma gaiola.
   Olho para Jolie, ela levanta a arma, e seguimos em frente.
   Mantenho as mãos levantadas. Se eu precisar de meus poderes, é daqui que eles sairão. Jolie parece perceber. Seria uma situação engraçada se…
   Os dois engolem em seco, e entram.
   A sala faz um rangido constante, que não sei dizer a fonte. A luz azul incomoda meus olhos. Alguma coisa pisca em alguma das mesas, deixando meus sentidos bagunçados. São piscadas fortes e confusas. Papéis espalhados, parecendo terem sido deixados às pressas. Bagunça, e um certo conforto. Muito mais confortável que qualquer outro recinto.
   Eu e Jolie olhamos ao mesmo tempo. As grades guardam uma pessoa.
   Curvada, sobre o leve efeito da luz azul, uma garota em posição fetal, as mãos sobre os joelhos. Está viva, e respira, mas está pálida. Num segundo não vejo seu rosto, mas ela se vira. Uma garota se vira.
   Cabelos loiros, bem amarelos, olhos fundos - o direito, castanho, e o esquerdo, azul. Nos olha, assustada. Como um animal em uma gaiola.
   Uma rural, numa gaiola. Ela é igual a Philip.

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