Atualmente, 15 de fevereiro
Carvoeiros eram antigos Rurais. Ganharam esse nome porque, após o início da guerra, abandonaram as antigas minas de carvão para batalharem na passiva, conseguindo armas e informações úteis. Então, eles se disfarçavam de Urbanos e se infiltravam nas cidades a fim de conseguir recursos e informações para os soldados Rurais. A vida deles não é fácil. Eles têm de fingir ser pequenos donos de lojas, e para conseguir os recursos que os Rurais necessitam, é preciso uma espécie de senha. Vovó me ensinara uma vez. Quando chegar à loja – cada Carvoeiro tem uma específica – você tem de pedir um saco de carvão. Depois que ele disser “não vendemos carvão aqui” você tem que contar até o número dez, pulando o número oito. Então, ele te pergunta a data e você responde com a data do dia de hoje menos três. Exemplo, se hoje é dia 29, você tem de dizer 26. É complicado e engraçado. Antigamente, os arsenais dos Carvoeiros eram cheios de armas e enfermarias movimentadas. Hoje, são pequenas pessoas que vivem suas vidas nas lojas, esperando por algum milagre - que os últimos Rurais restantes no mundo apareçam lá e precisem de recursos. Tudo o que sei sobre os Rurais, sobre o mundo e tudo quanto é conhecimento, sei pelos livros de história, ciência, português e de matemática que vovó nos deixou. Michael os leu umas quatro vezes antes de ser nosso professor por dez anos. Fora o básico, só sei o que pesquisei na internet por curiosidade e o que leio nos livros.
O nosso Carvoeiro mora há três horas do nosso esconderijo. Ele vem uma vez por semana e traz água, alimentos, roupas novas, escovas, shampoo, cobertores e até alguns livros para mim. Ele costuma a nos contar histórias da vida lá fora, como as coisas se renovam, como tecnologias surgem e como o mundo ficou dividido depois da guerra. Ele quem nos deu o videogame, os celulares e o computador no quarto.
Ele nunca nos disse seu nome. “Por motivos de segurança”, ele falava. Queria saber, apenas para não precisar sussurrar “Carvoeiro”, olhando para o chão, encarando seu corpo prostrado aos meus pés.
Eu só me apeguei a algumas poucas pessoas minha vida toda, e o nosso Carvoeiro era uma delas.
Eu não sei dizer ao certo como estou me sentindo.
Estou com medo. Disso eu sei.
Imagino a cena de um filme. O homem faz as vítimas se ajoelharem, os lê um juramento, diz que Deus os perdoa e então os mata.
Minhas mãos tremem.
Três homens. O uniforme deles é todo marrom-escuro, com um colete preto no peito e um capacete que cobre todo o rosto, menos os olhos, e uma bota preta de material pesado.
Nunca entendi nada de armas – muito menos segurei, ou até mesmo vi uma de perto. Mas há três ali, olhando direto para o meu peito.
O homem da frente começa a falar - gritar. O capacete abafa a voz, mas dá para notar perfeitamente bem que sua voz é grossa e rasgada – como se tivesse passado dias gritando sem parar.
- Está olhando o quê, garoto? Vai chamar seus três irmãos. Agora!
O tiro já fez o trabalho por mim.
Michael aparece na sala. Podemos estar idênticos agora, assustados. Ele está assustado, imagino eu. Atrás dele, vem Jolie.
Ambos têm a mesma reação. Congelam.
- O que é…isso? - pergunta ele, sem tirar os olhos das três figuras invasoras.
- Eu é que gostaria de saber o que significa isso! - O mesmo homem que outrora gritara que vocifera isso, e eu tomo um susto. Noto a distância entre nós dois que se encurta enquanto ele desce o resto dos degraus e se curva. - Cadê o quarto de vocês? Martinez nos disse que eram quatro.
O quarto.
Somos em quatro. Ele sabe disso.
Ele só não sabe onde ela está.
- ONDE ESTÁ? - ele grita e começa a andar em direção a mim. Sinto minha coluna enrijecer. Encaro o fundo de seus olhos enquanto a arma voa em direção à minha cabeça. Uma pancada.
Meu corpo amolece, minha visão escurece. Sinto um buraco gigantesco puxando minha força pelo lado direito de minha cabeça. Apenas minhas mãos me ajudam enquanto evito um desmaio. Quase parece que estou lutando contra algo. Levo a mão direita até a parte onde dói. Ela volta vermelha.
Sangue. Além de coisas de televisão, nunca vi muito sangue, com exceção às vezes que caí de árvores e me machuquei.
Acabei de cair de uma árvore. Onde está Vovó?
- Não vou perguntar de novo! - ele grita. Estou quase sentindo outra pancada quando Michael fala.
- Ele saiu para caçar…
Agradeço. Nos segundos que parecem séculos onde me recupero, percebo duas coisas: uma é que me machucaram para saberem a verdade através das pessoas que estão do meu lado. A outra é que Michael disse ele.
Eu jamais pensaria nisso.
- Como posso acreditar em você?
Estou assustado. A qualquer segundo posso perder mais uma pessoa que amo.
Antes de me levantar, mantenho meu olhar nos pés de Michael. Que ele continue ali, em pé.
Atrás dele, a porta.
Tenho a ideia mais óbvia que deveria ter tido desde que isso tudo começou.
O botão.
Vovó uma vez explicou que toda Carvoaria tem um botão de escape, que ativa portas de ferro em torno da saída de fuga. Temos alguns minutos para escapar de lá antes dos explosivos serem ativados e tudo ir pelos ares. Era uma tática de eliminar qualquer vestígio de pistas que os Urbanos poderiam usar contra os Rurais na guerra.
O esconderijo tem esse botão. Fica ao lado da porta dos fundos.
- Você pode procurá-lo. - Aponto para a porta que leva aos quartos e olho para meus dois irmãos. Percebo que posso não levantar. Jolie e Michael estão imóveis.
- Ali são os quartos? - O líder aponta. Que ingenuidade.
- Sim, mas ele não está lá - diz Michael. Ele entendeu.
- E vocês querem que eu acredite? Josh, venha comigo - e acena com a cabeça para o soldado à sua esquerda. - Justin, fique com eles. Se tentarem algo, não hesite. - Isso me faz olhar para a arma do soldado à direita. O líder começa a andar em direção aos quartos. Seu amigo vai logo atrás.
Se me sobra qualquer segundo para agir, este segundo é agora.
Penso no Carvoeiro no chão, há alguns metros de mim. O que quer que a morte dele me faça sentir, vai me ajudar a não desistir.
Eu espero.
Visualizo uma corda-bamba. Estou no meio dela. Posso voltar ou posso seguir em frente. Nas duas direções posso morrer, mas prosseguindo, pelo menos, tenho chances de conseguir ou morrer na tentativa.
Quando os dois homens saem de seu ponto de visão, Michael congela, olhando para a porta de entrada, avistando o Carvoeiro. Tento enxergar o interior deles. No que ele pensa? O que isso faz ele sentir?
Quase me sinto mal por ele. Não posso me dar esse luxo.
Me ponho em pé, sem desviar o olhar de seus olhos. Eles estão marejados.
Jolie, pelo contrário, começa a chorar.
Fecho os olhos e respiro fundo. Isso vai ser difícil.
Vejo meu caminho. Em linha reta, puxo meus irmãos e aperto o botão. Estamos a salvo. À minha direita, uma arma que chamaria outras duas. Uma para cada.
Que chances eu tenho?
- Silêncio! - o soldado grita. Jolie fecha os olhos, mas ainda está chorando. - Eu disse para ficar quieta. - E avança em sua direção. Sei que ele vai levantar a arma e vai acertar Jolie com ela.
É uma pequena distância. E eu sei o que ele vai fazer.
Olho para Michael. Olho para a porta. Olho para a arma.
Dou um impulso e empurro o cano para o chão com o máximo de força que tenho. Vejo meus músculos se retraindo. Ouço o tiro atravessar meus ouvidos enquanto o cano esquenta. O homem está curvado sobre a arma tentando recuperar o controle dela. Quando a arma levanta, empurro ela para de encontro com os olhos do homem. De primeira, acerto o capacete. Dou sorte de suas mãos estarem longe do gatilho. Na segunda tentativa, o cano vai de encontro com seus olhos, bem na ponta aguda da arma. O homem solta um urro de dor e leva as mãos até o rosto.
Não ouço mais nada. Meu cérebro cria imagens de Michael e Jolie correndo, mas não são reais. Tenho certeza de que já estamos mortos.
Com a arma nas mãos, viro a tempo de ver os dois homens correndo pelo corredor dos quartos e Michael e Jolie perto da porta dos fundos. Meus dedos encontram o gatilho. Não levo nem mesmo um milésimo para disparar em direção a entrada do corredor e, depois do coice quase fazer o trabalho por mim, largo a arma no meio do caminho.
O botão está ali.
Minhas mãos estão voando em direção a ele, quando ouço um barulho.
Caio no chão. Escorreguei? Tropecei? Levei um tiro?
Não importa.
Aperto o botão, a única coisa que enxergo.
Enquanto passo pela porta, uma plataforma cinza-prateado desce rapidamente e quase me esmaga. Não sei dizer de onde ela veio. Ouço barulho de tiros, mas a plataforma nos protege.
Eu consegui. Nós conseguimos.
Os encaro. Não sei a resposta do que fazer a seguir. Procuro por respostas. Nenhum de nós a tem.
Jolie ainda soluça. Encara a porta. Eu queria poder voltar lá e pegar o corpo. Não posso.
Nos levantamos e começamos a correr.
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Rural
Genç Kurgu"Então eu também me viro e deixo ela para trás. Deixo as lembranças. Deixo minha irmã, deixo meu marido, deixo toda a minha vida. Deixo tudo. Bem, quase tudo. Porque o que sobrou ainda estou prestes a perder. Meu filho." Depois de ter sua vida e fam...